Carta aberta aos desaparecidos Mário e Rubens
Alvaro Caldas, blog www.ultrajanocom.br
Poderia
tentar um contato mais rápido, via e-mail ou uma mensagem de WhatsApp, mas os
dois não chegaram a este tempo de manejar computadores e celulares. Todavia,
não tenho o endereço. O último que possuo é o de um quartel do Exército na
Tijuca, que continua em poder de seus antigos proprietários. Sei o endereço,
estive lá duas vezes. Barão de Mesquita, 457. O problema é que os militares
jamais reconheceram Rubens e Mário como seus hóspedes e vão devolver
prontamente a correspondência
Escrevo esta crônica para mandar um
abraço a dois brasileiros desaparecidos há 50 anos, completados neste mês de
janeiro, não importa onde estejam. Não é que eles tenham saído por aí levando
um violão debaixo do braço, como no samba de Zé Keti, homenageado este ano por
seu centenário. Mário e Rubens desapareceram nas engrenagens massacrantes de um
país ditatorial e até hoje estão perdidos nos escombros deste mesmo país.
Pertencem a uma mesma geração, a que combateu nas trevas. Em alguns momentos
cruzei com eles nesta atormentada travessia e pude testemunhar o discernimento
intelectual e a coragem política com que se entregaram às suas ideias de
justiça e transformação social.
Aproveito esta crônica para revelar
que estou também lhes enviando uma carta. Poderia tentar um contato mais
rápido, via e-mail ou uma mensagem de WhatsApp, mas os dois não chegaram a este
tempo de manejar computadores e celulares. Todavia, não tenho o endereço. O
último que possuo é o de um quartel do Exército na Tijuca, que continua em
poder de seus antigos proprietários. Sei o endereço, estive lá duas vezes.
Barão de Mesquita, 457. O problema é que os militares jamais reconheceram
Rubens e Mário como seus hóspedes e vão devolver prontamente a
correspondência.
A solução que encontrei foi
imprimir o texto, colocá-lo dentro de um antigo envelope azul de uso dos
Correios, fazer a subscrição e enfiar a carta dentro da garrafa de um Primitivo
de Puglia, um tinto italiano do especial agrado de ambos. Feito isso, fui até o
alto das pedras do Arpoador, de onde joguei a miraculosa garrafa nas águas do
mar, convencido de que Iemanjá a levará a seu destino. Rubens vai gostar porque
morou ali pertinho. Seus filhos iam à praia naquele ponto do Castelinho, em
Ipanema.
O baiano Mário, nascido em 1923 nas
barrancas do São Francisco, na pequena cidade de Santo Fé, Norte da Bahia,
estaria fazendo 97 anos. Jornalista, formado em Ciências Sociais e militante
político desde a adolescência, desapareceu aos 47 anos, em janeiro de 1970, um
ano antes e no mesmo sumidouro de vidas que tragou Rubens. Engenheiro civil e
político, o paulista de Santos foi eleito deputado federal pelo PTB de São
Paulo em 1962. Homem forte e saudável, Rubens estaria chegando aos 92 anos. O
Estado brasileiro o tornou desaparecido aos 41.
Seus amigos sabiam que tanto Rubens
quanto Mário gostavam de ler e tinham o poeta chileno Neruda e o escritor
baiano Jorge Amado, ambos comunistas, entre os seus autores preferidos. Rubens
era desinibido, alto, esportista. Praticou natação, teve aulas de piano, mas
não se entusiasmou. Formou-se em Engenharia Civil pela Universidade Mackenzie.
Foi vice-presidente da UEE, militou no movimento estudantil e agitou na
campanha do Petróleo é nosso. Eleito deputado federal em 1962, foi cassado em
64 por discursar na Câmara convocando estudantes e sindicalistas a resistirem
ao golpe.
O baiano Mário é considerado um
tanto precoce por historiadores. Começou cedo a usar calças compridas e terno e
gravata, Era um jovem tímido, míope, não tirava as moças para dançar nos
bailes, aprendeu e gostava de tocar violão. Disciplinado e estudioso, aos 16
anos já era militante, aos 18, repórter do Estado
da Bahia. Num ritmo veloz, tornou-se um dos mais destacados intelectuais e
dirigentes do PCB nas décadas de 1950 e 60. Tradutor, polemista, uma parada
dura numa discussão política, rompeu com o Partidão em 67. Junto com Apolônio,
criou uma organização para fazer a luta armada
Os dois não tiveram tempo para
andar até a próxima esquina e entrar num botequim qualquer, seguindo a voz do
morro de Zé Keti. Sua trajetória foi interrompida bruscamente. Aprisionados em
emboscadas, foram eliminados em dois dos crimes mais ferozes praticados naquele
quartel da Tijuca. Crimes que se assemelham aos cometidos pelo regime nazista.
Com a diferença de que os oficiais alemães foram julgados em Nuremberg e os
brasileiros, conhecidos e identificados, foram anistiados.
Do ponto de vista literário, o
inacreditável desaparecimento de dois homens íntegros e reais, de destacada
projeção social, cria uma situação típica de literatura fantástica, que combina
a magia com o surrealismo e o terror, Kafka e Borges seriam os mais indicados
para tratar do tema. Em sua ficção, Borges teceu uma história universal da
infâmia e apresentou uma galeria de facínoras. Kafka, com sua poderosa
imaginação, criou em suas novelas processos absurdos e surreais, a ponto de um
homem ser preso por nada, sem nenhuma acusação, e de transformar outro numa
barata.
Mário Alves de Sousa Vieira, o
Vila, foi preso por comandos do Exército armados com metralhadoras na noite de
16 de janeiro de 1970, quando cobria um ponto de rua com um companheiro que já
se encontrava preso, no bairro de Cascadura, Zona Norte do Rio. Estava
desarmado e portava apenas uma pequena pasta. Com salvas de comemoração, os
agentes o levaram para o 1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca.
Rubens Beyrodt Paiva teve sua casa
em Ipanema invadida por militares da Aeronáutica à paisana, armados com
metralhadoras, em 20 de janeiro de 1971. Saiu de casa dirigindo seu próprio
carro, comboiado pelos agentes da repressão. No dia seguinte foi conduzido para
o mesmo quartel da Tijuca. Com um ano de diferença, o deputado e o dirigente
político foram torturados e assassinados na mesma sala do corredor do andar
térreo, por oficiais do Exército integrantes de um órgão terrorista denominado
Doicodi.
Seus cadáveres desapareceram. Seus
rostos e suas vidas continuam presentes nos livros, na memória de familiares e
amigos, no violão e voz de Léo, filho de Lúcia, neto de Mário. Nos textos de
Marcelo, escritor e jornalista, filho de Rubens, 11 anos na época. Os
assassinos foram denunciados pelo MPF por associação criminosa, sequestro e
ocultação de cadáver. Homicídio qualificado por tortura não prescreve, segundo
Convenção Internacional do qual o Brasil é signatário. A anistia não contempla
o crime de ocultação de cadáver, considerado de caráter permanente e
imprescritível.
O que isso tem a ver com o Brasil
de hoje, hão de perguntar os jovens que se preparam para fazer as provas do
Enem, em meio à balbúrdia criada pela incompetência dos burocratas? A resposta
pode ser encontrada na apresentação da jovem poeta e ativista negra Amanda
Gorman, 22 anos, na posse de Joe Biden. Recitou ela: “Embora olhemos para o
futuro/A história está de olho em nós”. A atordoante história dos desaparecidos
está de olho em nós e poderia ser uma das questões da prova do Enem.
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