Ideologia, bom senso e racismo
O coronavírus expôs a verdade da
ideologia neoliberal, imposta por uma pedagogia do ódio (marca fundacional de
um continente colonizado e historicamente golpeado), baseada em convicções
coloniais e racistas, como a negação dos povos indígenas, a rejeição do que é
popular e supostamente bárbaro, e o tripé do modelo europeizante associado à
civilização: a supremacia branca, o progresso e o mérito individual
Nora Merlin, Carta Maior
O filósofo
marxista franco-argelino Louis Althusser, em seu livro “Aparelhos Ideológicos
do Estado”, desenvolveu sua teoria da ideologia diferenciando-se da tradição
marxista, tomando postulados lacanianos sobre a constituição do “eu”. Esse “eu”
é formado por identificações organizadas a partir de ideais que dizem “você é
isso”, condicionando a forma de incorporação das imagens.
Graças a Althusser, sabemos que o sujeito pode
atuar contra seus interesses de classe – atuação que inclui o voto –, de acordo
com suas identificações e ideais, pois, em sua teorização, não é a estrutura
econômica o que determina a ideologia, mas sim um produto das identificações
que constituíram o sujeito.
A ideologia, categoria ao mesmo tempo singular e
coletiva, consiste em um sistema de representações, afetos e paixões que se
instalam como formas de vida e se naturalizam. Cada época tem uma ideologia que
inclui os valores, a perspectiva com a qual o mundo é visto. Da mesma forma, o
sujeito vive em sua ideologia que, é em grande parte, inconsciente.
O coronavírus expôs a verdade da ideologia
neoliberal imposta por uma pedagogia do ódio, marca fundacional de um
continente colonizado e historicamente golpeado. Em vários países da América
Latina, a ideologia neoliberal ganhou consistência a partir de convicções
coloniais e racistas pré-existentes, como a negação das próprias origens
nacionais (povos indígenas), a rejeição do que é popular e supostamente
bárbaro, e o tripé do modelo europeizante associado à civilização: a supremacia
branca, o progresso e o mérito individual.
O aparelho de poder neoliberal aproveitou a baixa
autoestima nacional, a vergonha de formar parte deste quintal subdesenvolvido,
para impor sua ideologia e as receitas que os “países sérios” propunham. O
maior triunfo dos colonizadores no final do Século XV foi ter instalado os
ideais civilizatórios e evangelizadores, a ideia da supremacia branca e a
rejeição dos povos originários – “os índios” –, desprezados e considerados como
seres inferiores. Essa concepção, encarnada no ódio de si mesmo, foi promovida
pelos setores abastados, e foi germe que se alimentou durante anos.
A ideia de “combater a barbárie” por meio da
educação, como dizia o velho caudilho argentino Domingo Sarmiento, tinha como
princípio fundamental o desprezo pelo “gaúcho”, pelo “caipira”, por sua fama de
“preguiçoso e incivilizado”. Os “índios”, os “gaúchos”, os “caipiras”, todos
são parte dessa barbárie ignorante que impedia o progresso dos nossos países.
Sarmiento promoveu na Argentina o ideal de que o europeu e o urbano são a
solução para superar os males do país, impedindo que este se identifique com o
rural, com o mestiço, com o indígena e com o pardo.
No final do
Século XIX, com base nas disposições da constituição argentina de 1853 e na pressão
das elites políticas, foi incentivada a imigração europeia: milhares de pessoas
que chegavam em navios e eram as portadoras do progresso. A civilização, a
rejeição da barbárie, o ódio ao popular, o mito de uma Argentina branca e as
narrativas da superioridade europeia se consolidaram como uma realidade para
grande parte da população. Uma história de sedimentação cultural,
permanentemente preservada e estimulada por grupos de poder e o consentimento
de uma parte importante da sociedade.
Há poucos dias, uma frase infeliz do atual
presidente da Argentina, Alberto Fernández, se tornou a mais citada pelos meios
de comunicação desde que ele assumiu o cargo, e causou rebuliço a nível
nacional e mundial: “os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da
selva, mas nós argentinos viemos dos barcos”. O gatilho do questionamento foi a
referência às “origens” de mexicanos, brasileiros e argentinos, além do desejo
de fazer uma deferência à Espanha, já que se tratava de um encontro com o
presidente daquele país.
Vale a pena perguntar: o que levou o presidente
Fernández a tal desatino, sendo ele uma figura que se percebe como um defensor
de uma política inclusiva e contrária a todo tipo de segregação? Vários
exemplos comprovam o caráter do mandatário, a começar pelo caso de Braian
Gallo, um jovem que foi mesário durante as eleições de 2019, e sofreu um
episódio de discriminação naquela oportunidade, devido ao seu modo de se
vestir, com camiseta de um time de futebol e um boné virado para trás. Nas
redes sociais, ele era ridicularizado e chamado de “pibe chorro” (ou “ralé” no
Brasil). Em resposta ao ódio racista, Alberto Fernández recebeu Braian em sua
casa e tirou uma foto icônica, na qual tomou dele o boné e o vestiu ao
contrário, no mesmo estilo do seu convidado. Naquela ocasião, o então
presidente eleito declarou que “o país que está chegando vai deixar para trás o
preconceito e a discriminação”.
Já como presidente, Fernández criou o Ministério
da Mulher, Gênero e Diversidade, defendeu Evo Morales e salvou sua vida, foi um
dos primeiros em parabenizar Pedro Castillo, professor de escola básica da zona
rural do Peru, em reconhecer sua vitória eleitoral e defendê-lo diante do
perigo de um golpe da direita peruana. Nenhum desses atos políticos condiz com
uma concepção elitista ou discriminatória, contraditória com a prática
democrática, nacional, popular e feminista.
Como dissemos, uma parte da ideologia é
inconsciente e se aciona em formas naturalizadas, ou como frases automatizadas,
proferidas sem maior reflexão, pois foram instaladas como senso comum. Qualquer
pessoa, mesmo um presidente que expressa uma rejeição sincera às práticas
racistas, é, em maior ou menor medida, capturado pela ideologia prevalecente.
Qualquer um pode, eventualmente, votar e agir contra seus interesses ou
expressar uma afirmação contrária às suas convicções.
Ora, muitos políticos na Argentina falaram sobre
esse lugar comum, historicamente instalado por grupos de poder. Então, por que
só dessa vez a frase do presidente produziu medo e raiva popular?
A raiva social produzida por essa contingência não
foi apenas um problema relativo à verdade histórica. Os lugares comuns, os
preconceitos, são sedimentações ideológicas das relações de poder que
testemunham triunfos hegemônicos nas formas de vida. O incômodo social que a
frase do presidente produziu expressa uma mobilização de afetos coletivos e uma
vontade de se limitar à naturalização das manifestações racistas instaladas
como senso comum.
Tudo sugere que se trata de um momento de reativação
ideológica, a nível regional, do ideal colonialista e europeu, sedimentado em
um continente colonizado e sempre golpeado.
Temos a oportunidade de questionar seriamente essa
história, de deixar de lado o colonialismo mental, as idealizações deixadas pelos
países “civilizados” e assumir nossa miscigenação étnica, reivindicando a
diversidade que somos. (*Publicado
originalmente em el destape | Tradução de Victor
Farinelli)
.
Veja:
O ritmo e o tom do povo nas ruas agora https://bit.ly/2UAeyfR
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