Cangaceiros
versus cowbys
Ronaldo
Correia de Brito
Eu tive uma namorada na
adolescência que lia bastante e seu projeto de vida era escrever um romance.
Nada demais se considerarmos que na França do século XVIII quase todas as
mulheres da nobreza eram escritoras. Ela nunca transpôs a Chapada do Araripe e
resolveu ambientar o seu livro em Veneza. Começava com dois personagens
passeando pelas ruas da cidade. Pareceu-me absurdo. Imaginava que em Veneza,
além de casas, igrejas e teatro só existia água e as pessoas se locomoviam em
gôndolas.
Muitos escritores ambientaram
suas peças, contos ou romances em lugares diferentes daqueles onde viveram. No
caso de minha namorada, a escolha da cidade italiana se fazia por vergonha de
assumir a cultura local. Ela vivia presa ao colonialismo que levou a literatura
brasileira a repetir modelos europeus e norte-americanos. Hoje, nem sei que
lugar ela escolheria para sua história. Sofremos um novo colonialismo, o do
eixo Rio/São Paulo. Desde a década de 30, quando Gilberto Freyre publicou o
Manifesto Regionalista, o adjetivo virou referência geográfica mais que
artística, significando tudo o que se produz fora do Sudeste.
Um amigo perguntou-me outro dia
por que nenhum crítico de arte qualifica como regionalista o cinema de gangster
americano, ambientado em Chicago, com bandidos e detetives de chapéus e capas
pretas. Ninguém considera regionalista a literatura e o cinema sobre o oeste
americano, cheio de diligências, carroças de colonizadores, cowboys de calças
apertadas e revólveres na cintura. John Ford, John Huston e Sam Peckinpah nunca
foram chamados regionalistas, por mais que caprichassem nos estereótipos de
índios apaches e bandidos tomando uísque no balcão de um saloon.
Alguém ouviu falar que Steinbeck é regionalista? Mas Graciliano Ramos e todo o
cinema nacional sobre cangaço são regionalistas.
Não chamam regionalistas os
filmes de gangster ou de faroeste porque são produzidos num país que domina a
economia do mundo e determina os valores de consumo, impondo modelos aos outros
países. Igualmente não se chama regionalista a produção cultural do Sudeste
porque essa região detém o poder econômico e o controle da mídia no Brasil.
Pagode é samba e acabou-se. Mas baião é música regionalista nordestina, oxente!
E se atreva a dizer que não!
Bens de cultura são produtos
vendidos como Coca-Cola e calças jeans. Poucos artistas escapam à sedução desse
modelo, que acena com uma fatia do mercado consumidor ou a promessa de um
Oscar. O cinema iraniano é um exemplo raro de independência. Mesmo o nosso
celebrado Walter Salles Júnior realiza seus filmes dentro da saia justa
costurada por seus produtores, de olho no mercado internacional.
Um xamã do Amazonas deu um
triste depoimento num programa de televisão. Ele queixou-se que a sua medicina
era inferior à dos homens brancos, porque os médicos ganhavam muito dinheiro e
ele não tinha grana para comprar iates nem helicópteros.
O olhar de um povo sobre a
cultura de outro povo que lhe é estranho tende a ser preconcebido. Gregos e
romanos consideravam bárbaros os que estivessem além das suas fronteiras.
Americanos e europeus nos acham exóticos. Capistrano de Abreu queixava-se de
que ainda não haviam escrito a história dos sertões do Brasil, porque nossos
historiadores sempre ficaram nas cidades litorâneas. Um cineasta da nova
geração também declarou que o cinema não esgotou a épica sertaneja.
O que se deve considerar na
análise de uma obra de arte é a sua qualidade, independente da origem. Se
usássemos o juízo da maioria dos críticos literários, acharíamos o Quixote de
Cervantes regionalista, anacrônico e excessivamente prolixo. Mas nenhuma obra
permanece tão contemporânea. Cervantes não sentiu vergonha da sua Espanha
provinciana. Não foi atrás do cenário de um país rico, Florença, por exemplo.
Escreveu no seu idioma, sem ligar para as modas literárias do resto da Europa.
Não digam para abjurarmos a
nossa cultura, em troca de reconhecimento. Um contista da “nova geração”
adulterou sua carpintaria literária para merecer o direito de constar numa
antologia de contistas “pós-modernos”, editada em São Paulo. Preço alto. Mais
alto que o pago por minha namorada de adolescência com a sua ficção romântica sobre
campanários góticos e arlequinadas, de um país que ela continua sem conhecer.
Ou terá conhecido numa excursão para a terceira idade?
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Veja: Como a gente se encontra nas redes
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