ENCOLHI A MEDALHA, TALKEY?
Quem são os 12 cientistas que aceitaram premiação de Bolsonaro; outros
23 devolveram honraria depois que presidente confiscou medalha de pesquisadores
incômodos para o governo
Thais Bilenky,
revista Piauí
Mais de duzentos dos
maiores pesquisadores e acadêmicos do país se indignaram com a decisão do
presidente da República, Jair Bolsonaro, de tomar de volta a medalha da Ordem
Nacional do Mérito Científico dois dias depois de concedê-la a dois cientistas
cujo trabalho incomodou o governo. Duas centenas de premiados em edições
anteriores desta que é a maior premiação da área no Brasil fizeram um
abaixo-assinado em protesto contra a atitude do presidente. Vinte e três
agraciados com a mesma honraria neste início de novembro abdicaram dela. Para
muitos, a renúncia dessa vez se tornou mais honrosa que a medalha. Mas, na
contramão da comunidade científica, doze dos agraciados não aderiram ao
movimento.
“É uma decisão
individual”, justificou o médico cardiologista Protásio Lemos da Luz,
pesquisador sênior do Instituto do Coração que foi promovido à classe de
Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico nesta edição de 2021, duas
décadas depois de ter recebido a medalha. “A Ordem foi desrespeitada pelo
presidente, que não tem direito de fazer o que fez”, reconheceu Luz, que, no
entanto, não quis abrir mão do posto.
Seu conhecido e figadal
antipetismo despertou a desconfiança de colegas de que a postura teve motivação
política. O cardiologista negou. “Minha posição anti-PT é muito antiga, e eu a
mantenho. Os governos do PT foram um desastre completo para o país e vejo com
maus olhos a remota possibilidade de o PT voltar ao poder. É inaceitável”,
esbravejou. Ele revelou ter votado em Bolsonaro em 2018, “não porque acreditava
que seria um grande presidente, mas como forma de barrar o PT”. Daí a se
concluir que é bolsonarista há longa distância, reclamou. “Recebi [a
honraria] em contexto científico. Não apoio o governo
Bolsonaro em nenhuma circunstância, entendeu? É um governo que faz horrores de
coisas erradas.”
Colegas
não pensam como ele. Argumentam que receber a medalha é avalizar a
“interferência inédita” do presidente na atividade científica, nas palavras do
médico Paulo Saldiva, da USP, que como Luz foi promovido a Grã-Cruz, mas
renunciou. “Alguns pesquisadores diziam que não receberiam porque não é bom,
né? Às vezes você contrai um fenômeno viral, uma mutação da hanta vírus que
perde o H e leva a um quadro de microcefalia do adulto”, zombou.
A indicação dos
agraciados da última edição foi feita, como prevê o decreto que institui a
medalha, por representantes da Academia Brasileira de Ciências (ABC), da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e do Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Os nomes foram escolhidos em 2019, mas a
premiação ficou parada nos escaninhos do Palácio do Planalto até o dia 3 de
novembro de 2021, quando Bolsonaro assinou o decreto concedendo as homenagens.
No dia 5, porém, ele revogou a nomeação de dois pesquisadores, Adele Schwartz
Benzaken, da Fundação Oswaldo Cruz, e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, da
Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado.
Ambos têm em comum
trabalhos que desafiam a pauta anticientífica e de costumes conservadores do
bolsonarismo. Ela fez uma cartilha de prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis a homens trans quando estava no Ministério da Saúde. Ele
encabeçou um estudo que comprovou que a cloroquina não apenas não cura o
paciente com Covid como agrava riscos cardíacos. Procurados pela piauí,
nenhum dos dois quis se manifestar.
“É inaceitável que se
pratique o expurgo de cientistas que têm contribuído, com integridade e
competência, para o desenvolvimento nacional e a saúde da população.
Protestamos, como cientistas e cidadãos, contra essa escalada autoritária, que
representa um ataque frontal ao espírito da Ordem Nacional do Mérito
Científico”, asseverou em carta aberta o presidente da Academia Brasileira de
Ciências, Luiz Davidovich. Ele é um dos mais de duzentos signatários do
abaixo-assinado contra a iniciativa de Bolsonaro.
À piauí Davidovich
contou que a comissão da Ordem Nacional do Mérito Científico se vê diante de um
dilema. Sem poder para admitir ou excluir membros do prêmio por decisão
solitária – ela deve ser, pela força da legislação, referendada pelo colegiado
–- Bolsonaro pode ser contestado na Justiça. A comissão cogita recorrer, mas
teme que, ganhando, inverta a situação, deixando agraciados os dois cientistas
excluídos, mas alijando os outros que renunciaram em protesto. “É o teatro do
absurdo do Ionesco”, comparou Davidovich.
Outra pesquisadora que
manteve a condecoração é Patricia Rieken Macedo Rocco, professora titular da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um ano atrás, ela participou de uma
solenidade no Palácio do Planalto ao lado de Bolsonaro e do ministro Marcos
Pontes (MCTI) para anunciar a eficácia do vermífugo Anitta no tratamento da
Covid. Como contou a piauí na época, ela havia
recebido 5 milhões de reais do ministério para realizar estudos clínicos do
medicamento, que não tiveram resultado animador e mesmo assim foram anunciados
com pompa como redentores na sede do governo.
Um de seus principais
parceiros de pesquisa acadêmica é Marcelo Morales, secretário de Pesquisa e
Formação Científica do Ministério da Ciência. A reportagem a questionou sobre a
medalha do Mérito Científico por e-mail e recebeu em resposta uma mensagem não
assinada dizendo que “a professora Rocco está com problemas familiares e
pessoais graves”.
Outros cientistas com
vínculos com o governo mantiveram a medalha. Carlos Emanuel de Souza,
pesquisador titular do Laboratório Nacional de Computação Científica, ligado ao
MCTI, não se pronunciou sobre a polêmica nem respondeu ao contato da piauí.
Em contrapartida, Ronald Cintra Shellard, que dirige o Centro Brasileiro de
Pesquisas Físicas, igualmente vinculado à administração federal, renunciou à
honraria.
“Devo dizer que muitos
que assinaram têm recursos do governo, seja do CNPq, da Capes, do Finep. Todos
nós recebemos”, observou Davidovich. “Aliás, se publicar isso, o presidente vai
querer cortar as bolsas de pesquisa provavelmente. Não pode dar ideia porque
ele pega”, provocou.
A lista de condecorados
satisfeitos era maior – dois pesquisadores aderiram à renúncia coletiva
tardiamente, ou porque não acessaram seus e-mails corporativos no final de
semana passado, quanto a iniciativa foi debatida entre os agraciados, ou por
reflexões a posteriori. “Receber tal premiação é honraria imensurável para
qualquer cientista como também para as instituições às quais pertencemos”,
escreveram em carta a Bolsonaro os professores Selma Jeronimo (Universidade
Federal do Rio Grande do Norte) e Edgar Marcelino de Carvalho Filho (Instituto
Gonçalo Moniz da Fundação Oswaldo Cruz). Com a exclusão dos dois cientistas,
alegaram, “nós não nos sentimos à vontade para receber a honraria neste
momento, pois esses pesquisadores foram indicados tendo como base o mérito
científico de uma carreira dedicada à ciência, o mesmo critério utilizado para
a nossa indicação”.
Há casos como o de
Elibio Leopoldo Rech Filho, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (Embrapa), que estava em tratamento de saúde nos dias do imbróglio
e por isso não se manifestou.
Em outros casos, como
definiu brincando o médico Paulo Saldiva, o agraciado pode “começar a
acreditar” no reconhecimento que obteve com a medalha – e passar “a emitir
energia ególica”, sem ponderações éticas e políticas.
.
Veja: O leito comum da defesa da
democracia https://bit.ly/3m3IpbJ
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