À flor da pele
Cícero
Belmar*
Há
frases bem humoradas e até irônicas, ainda assim, reveladoras de nossos
sentimentos. Como esta da canção de Zeca Baleiro: “Qualquer beijo de novela me
faz chorar”. Minha amiga estava bem assim, não porque se derretesse em lágrimas
vendo as telenovelas. Andava de fato emotiva, chorando por bobagem.
Desmanchava-se até diante de um pastelão de lanchonete. E se fosse de palmito
com requeijão, nem se fala.
Final
de tarde de um dia de setembro de 2021. A minha amiga Mack Douglas, que é
charmosa porque o mundo quis assim, encontrava-se num café de shopping Center,
no Recife. Já levava a xícara à boca quando viu a balconista cortando o
pastelão, para servir outro cliente. Não resistiu diante de cena tão forte e
foi aos prantos. As lágrimas amargas, que inicialmente eram disfarçadas, não se
limitaram ao choro discreto. Chegou ao soluço. Tudo isso por causa de uma fatia
de pastelão.
Sabe
aquele minuto em que o mundo parece ter paralisado? Todas as pessoas que
estavam do café voltaram-se, quase que ao mesmo tempo, na direção da mesa onde
a elegante jornalista ocupava uma mesinha. Mack é bela. Alta, magra, mais
parece uma artista da televisão. Tem amiga maravilhosa quem pode. E chorona,
também.
Consequências
da pandemia de covid-19. Antes, Mack não era assim. Mas, esse período foi muito
punk, cada um de nós teve que viver o período do seu jeito. Mergulhamos fundo
em sentimentos. De ansiedade, medo, insegurança. As ausências nos destruíram.
Nós nos descobrimos desprotegidos, impotentes. Ficou difícil gerenciar tanta emoção.
E escondê-las, também.
Mack
Douglas sempre teve um estilo de vida legal, com muitas amigas. Mas, desde o
ano passado, quando começaram as restrições, ela foi ficando com medo de sair
de casa. Veio a flexibilização, mas o simples fato de pensar em sair de casa já
lhe deixava em estado de alerta. Assim como milhares, ela tinha medo do
invisível, de ser contaminada.
Foi
na analista. É aquela história: os malucos veem gnomos e os psicólogos querem
capturá-los. A profissional a recomendou vencer o medo. Aos poucos, Mack
começou a sair de casa para passeios como esse ao café do shopping center. A
bolsa lotada de álcool em gel e máscaras.
No
café, viu a moça cortando o pastelão. Logo de palmito com requeijão! Diante do
choro soluçante, uma senhora, que estava ao lado, quis manifestar
solidariedade, ainda que não soubesse o real motivo do choro:
–
Eu entendo o quanto é difícil para você.
Entregou
um guardanapo.
–
Vou ficar com você enquanto você estiver triste, ok?
Outras
pessoas também se aproximaram para saber o que houve. Quando se conteve, Mack
Douglas contou, a voz cortada:
–
… É que eu me lembrei de minha avó.
A
avó morreu em 2019, um ano antes da pandemia. Adorava pastelão de palmito com
requeijão. Mack a amava. A mulher que lhe entregou o guardanapo ficou um tanto
decepcionada, esperava um relato que tivesse a ver com a covid-19. Não tinha.
As
outras que vieram à mesa, também. Sem saber como lidar com um momento que nem
ela mesma esperava protagonizar, Mack encontrou uma saída: “Trazer” a avó para
a conversa. Deu um jeito de contar coisas engraçadas, pois em vida a avó foi
muito bem humorada. Contou esta:
–
Certa vez, minha avó, que passou a vida fazendo regime, pediu uma fatia de
pastelão.
“Minha
avó adorava um pastelão, mas para ela era um sacrilégio comer massa. Achava que
engordava só de pensar. Vaidosa, queria sempre queimar uma gordurinha. Mas,
resolveu sair do regime. Quando foi levar o pedaço à boca, ele escorregou do
garfo e caiu no chão. Desolada, mas sem perder a piada, minha avó disse: Graças
a Deus, em dois segundos, perdi 100 calorias”.
Todas
as que se reuniram em torno de Mack, riram com a história. E cada uma, que
também tinham tristezas acumuladas, lembrou de uma história de regime para
contar. Quem não engordou nessa pandemia, né?
Cada
história mais risível que a outra. Os risos substituíram os corações
despedaçados, as dores, as saudades. E todas terminaram, assim, com risadas,
substituindo as lembranças por um toque de alegria e um curioso sentimento
gratidão por estarem vivas.
*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos,
romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens.
Membro da Academia Pernambucana de Letras.
[Ilustração: Ana Razumovskaya]
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Veja: Uma poeta sertaneja se faz universal https://bit.ly/3BKdwhd
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