Evoé
Valéria Santos*
Não quero que o vinho acabe. É uma
companhia. Fica bonito na taça, com essa cor que lembra sangue, hematoma, um
soco na cara. Algo no limite, quase o efeito de uma batida. Talvez a Via
Crucis. Sempre um pouco do deus grego em mim. A sensação de ultrapassar uma
barreira. No mais, rir. Quase sempre chorar, que o vinho me abre as
compotas.
Eu adoro chorar. É sinal de que sinto.
É sinal de que vejo. É sinal de que sinto prazer e dor. As pessoas adoram rir.
Rir de tudo. O riso não exige reflexão, que é sempre um contrato entre a alma e
o espírito. O espírito que voa, esse fantasma da ópera que está além, e que o
vinho meio que resgata na bebedeira. Um parto difícil... Esse fantasma sem
cartão de crédito, sem as soluções fáceis para ter uma vida de qualidade. Tipo:
“Dez passos para ser um milionário”. “Dicas para ser feliz”. É piada?
Devo estar meio bêbada. Mas não quero
que o vinho acabe. Ainda que não tenha qualidade. Eu queria tomar um vinho do
Porto, ouvindo um fado português, à luz da lua estendendo um tapete de luz no
mar, cujo sal talvez ainda tivesse resquícios das lágrimas de Portugal. Mas as
pessoas não choram mais. Camões não sensibiliza mais.
Ah...Eu queria descansar até de manhã
na coxa de Zeus. Feito o deus do vinho ali gestado. Renovação da carne. Da
força. Eu queria surgir das águas feito Afrodite. Amor. Amor. Amor. Surgir de
meu próprio sal, depois de muito choro, muito vinho, muita lágrima. Doce. Doce.
Doce vida de Fellini.
Estranho... Não consigo chorar. Talvez
se eu levasse um soco na cara. E depois, o hematoma. Algo no limite. Quase o
efeito de uma batida. Um tapa na cara. Algo que deixasse na pele pálida uma
cor.
Cor de vinho tinto. Na taça. Sempre uma
companhia.
*Professora, cronista
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