Pedacinho de corda de
lã
Luciano Siqueira
São quatro pedaços de uma corda de lã usados para prender as quatro cortinas que nos protegem do sol, estendidas em sequência no janelão da varanda.
Logo cedo pela manhã,
são soltas sobre a rede para que as cortinas sejam abertas e evitem que o sol
atinja a tela de Teresa Costa Rêgo e mesmo queime a alvura das poltronas postas
de frente para TV.
Mas quando o sol já
não é ameaça, voltam a amarrar as cortinas, pois é preciso que a claridade
natural da vida ilumine a sala.
Há um pedaço de corda
de lã diferente dos outros: meio que afrouxado.
Tenho certeza de que
justamente esse pedaço diferente dos demais tem vida própria. Ora se esconde
por debaixo de uma das pequenas almofadas que uso para repousar a cabeça
enquanto leio na rede, ora foge do meu ângulo de visão.
Tenho que
procurá-lo.
Às vezes o encontro
no chão rente à parede. Deve ter pulado da rede para se separar dos demais e se
fazer original.
Ou para se sentir
valorizado, diferente dos outros, pois não encontradiço à primeira vista.
Outro dia o
encontrei enrolado no pequenino tronco de um cróton, este também escondido
entre os demais jarros de planta sobre a mesa de tampo de vidro num canto da
varanda.
Hoje me dei conta que
o pequenino pedaço de corda de lã foi mais esperto e conseguiu, sabe-se lá
como, se ocultar enroladinho bem próximo ao punho da rede.
E eu que já o havia
dado como perdido - talvez levado pelo vento, transposto o janelão da varanda e
indo se alinhar num dos andares de baixo daqui do prédio ou lá na garagem do segundo piso -, o surpreendi quando me deitava para ler um poema de
Drummond.
Precisamente esses
versos de “A Máquina do Mundo":
"Abriu-se em calma pura, e convidando/quantos sentidos e intuições restavam/a quem de os ter usado os já perdera".
O poema, a
confortável rede, a claridade branda vinda da rua e o sentimento de êxito pela
busca intrigante, e quase por acaso bem sucedida do pedacinho de corda de lã, me
fazem, enfim, compreender que todas as coisas têm vida, pois todas as coisas
são feitas de átomos reunidos em moléculas e se tornam rígidas porque suas
moléculas conflitam entre si produzindo o contraditório equilíbrio necessário à higidez.
Sim, nesse infinito e
misterioso Universo todas as coisas têm vida e dialogam na linguagem
possível. Por isso existem. Nós humanos prepotentes, que nos julgamos acima de
todas as coisas, é que não compreendemos isso.
Leia também: ‘Bonequinha de louça’ https://bit.ly/3o1UX3t
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