NEM BANHEIRO UNISSEX, NEM BANHEIRO ALGUM
Enquanto Bolsonaro ataca uma suposta “ideologia de gênero”, quase
4 mil escolas públicas sequer têm banheiro. E o problema aumentou na pandemia
Luigi Mazza e Vitória Pilar, revista Piauí
Na periferia da Zona Sul de Teresina, no colégio estadual Monsenhor
Cicero Portela Nunes, tanto alunos quanto professores estão habituados a usar
um banheiro unissex. Mas não se trata de uma iniciativa para acolher pessoas
trans ou incutir nos alunos “a tal ideologia de gênero”, como alardeou o
presidente Jair Bolsonaro no debate presidencial desse domingo (16). Trata-se,
simplesmente, de falta de opção: na escola, que abriga ao menos cem adolescentes
que cursam o ensino médio, além de professores e zeladores, há apenas um vaso
sanitário.
A privada, usada
por todos, fica na sala da coordenação. Ali há um banheiro estreito, pensado
para atender uma equipe pequena de educadores, não um batalhão de jovens. “Só
cabe uma pessoa dentro. O jeito é esperar e ter calma”, resume uma funcionária
do colégio, que não quis ter seu nome citado. Os banheiros que deveriam servir
aos alunos estão em obra, sem previsão de serem concluídos. Há concreto exposto
e pedaços de ferro por todos os lados. Ainda não há portas, muito menos
privadas. Mas está lá, desde já, a distinção de sexo: na parede cheia de
reboco, foi pintada a palavra “feminino” onde um dia funcionará o banheiro das
meninas. O banheiro masculino, do outro lado do pátio, estava inacessível.
Diferentemente
das fake news sobre banheiros unissex, instrumentalizadas pela
extrema direita para criar um clima de pânico moral, escolas sem banheiro são
um problema concreto no Brasil. Segundo o Censo Escolar divulgado este ano pelo
Inep, havia em 2021 no país 3,7 mil colégios públicos sem nenhum banheiro.
Estudavam nessas escolas 608 mil alunos, a maioria deles (67%) em estados do
Nordeste. O problema se agravou durante a pandemia: em 2019, havia 3,6 mil
escolas nessa situação (2,4% do total); em 2020, eram 4,3 mil (3,5% do total,
proporção que se manteve em 2021).
Leia também - Marcio
Pochmann: Século 21 impõe novas bases para a educação brasileira https://bit.ly/3Bv2KNR
Os dados levam em
conta apenas escolas que funcionam, de fato, numa construção feita para ser
escola. Se forem contabilizadas as salas de aula improvisadas em galpões e
presídios, havia no ano passado 5,2 mil colégios públicos sem acesso a banheiro
– isto é, sem sequer um toalete funcionando, seja para alunos ou funcionários.
Mas há, além disso, um universo muito maior de escolas com gradações desse
problema – como é o caso da escola da periferia de Teresina, onde há apenas um
banheiro para todo o corpo escolar.
A poucos
quilômetros dali, no bairro Monte Castelo, fica o CEEP (Centro Estadual de
Educação Profissional) em Saúde Monsenhor José Luís Barbosa. A escola tem
banheiros masculino e feminino, cada um com cinco cabines. Mas do lado
feminino, das cinco portas, quatro estão quebradas. A maioria das descargas não
funciona mais. Todo dia, os zeladores precisam carregar baldes d’água para
fazer a limpeza dos vasos sanitários.
“Fica um cheiro
horrível lá. E como a porta simplesmente não fecha, não tem como uma menina ir
sozinha ao banheiro. Ela tem que ir com uma coleguinha pra ficar segurando a
porta”, diz Nívea, de 16 anos, que cursa o ensino médio na escola. Uma de suas
amigas costuma levar papel higiênico de casa, já que raramente encontra um rolo
no banheiro. A escola, que mescla ensino médio com ensino técnico, tem
aproximadamente 150 alunos.
A falta de
banheiros não é problema exclusivo das escolas: em todo o país havia, até 2019,
4,8 milhões de pessoas sem banheiro em casa, segundo dados colhidos pelo IBGE.
“Esses números chocam. Existe um problema de infraestrutura como um todo
no Brasil, e com as escolas não é diferente, sobretudo nas regiões mais
pobres”, diz Luiz Miguel Martins Garcia, presidente da Undime – a União
Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação. Para Garcia, que é secretário
de educação em Sud Mennucci, cidadezinha no Oeste de São Paulo, a piora nos
dados revelados pelo Censo já era esperada por causa da pandemia. “Os serviços
foram desestruturados, a manutenção parou, então a infraestrutura se deteriora,
é claro. O grande problema são os números que já estavam lá antes disso.”
O baixo
investimento em educação é um problema histórico no Brasil. Soma-se a isso,
segundo Garcia, o fato de que os investimentos, quando acontecem, nem sempre chegam
aos pequenos municípios. “Há dificuldade até em fazer o mapeamento da situação
das escolas. O contato com escolas rurais, escolas onde não há internet e às
vezes nem energia, é difícil.” Ele cita como exemplo o programa Água na Escola,
elaborado pelo Ministério da Educação e que enviou recursos diretamente para os
colégios com o objetivo de garantir água potável aos alunos. A Undime mediou a
implementação do programa. “Nossa equipe ficava inconformada, porque muito
recurso voltava para o Tesouro. Alguns gestores não aceitavam o dinheiro. Em
outros casos não foi possível contactar a escola.”
Em 2021, segundo o
Censo Escolar, mais da metade das escolas públicas de educação infantil (56%),
que são de responsabilidade dos municípios, não tinham banheiro adequado para
crianças pequenas – isto é, adaptado para o tamanho e as necessidades de alunos
de até 5 anos de idade. Uma proporção parecida das escolas públicas de ensino
básico (53%) não tinha banheiro acessível para pessoas com deficiência ou
mobilidade reduzida.
Não são problemas
laterais. “Onde falta muita coisa, parece que isso não faz falta, mas faz”, diz
Garcia. Os banheiros adequados para crianças fazem parte do processo
educacional. “O prejuízo disso é você atrasar o desenvolvimento da autonomia
das crianças. Se não tem um vaso sanitário adequado, a criança vai se sujar. Se
tem um banheiro só para trinta alunos, não dá tempo de a criança experimentar a
sensação de tomar banho, de aprender com aquilo. O processo educativo deve
considerar tudo isso.” De acordo com o Censo, 61% das escolas públicas não têm
banheiro equipado com ducha.
A infraestrutura
precária das escolas parece, até aqui, pouco importar na eleição. No debate
realizado no domingo pela TV Cultura em parceria com Band, UOL e Folha
de S.Paulo, Bolsonaro deixou claro qual é sua prioridade no
debate sobre educação: “Não queremos que os nossos filhos, ao irem pra escola,
frequentem o mesmo banheiro [que o sexo oposto]! Essa é a política do
lado de lá.” Desde o primeiro turno, dispararam as buscas por “banheiro
unissex” no Google, de acordo com os dados do Google Trends. Diante disso, o
site oficial da campanha do ex-presidente Lula achou importante fazer uma
postagem exclamando: “Banheiro unissex é fake news! Lula é a favor
de banheiros separados.”
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