A ferida, a luta e a cura
Relações coloniais são um fantasma sempre à espreita, e prestes
a devorar a esperança. Brasil atual é o caso mais claro. Não será possível
afastar a ameaça sem reverter o epistemicídio e resgatar o valor dos saberes
atacados pelo eurocentrismo
Boaventura de Sousa Santos, Outras palavras
Uma das características mais intrigantes das
sociedades que estiveram sujeitas ao colonialismo histórico europeu é a
permanência, a seguir à independência, de relações de tipo colonial sob velhas
e novas formas, tanto internas como internacionais. Dois desses tipos estão há
muito identificados. São o colonialismo interno e o
neocolonialismo/imperialismo. O conceito de colonialismo interno refere-se ao
modo como as elites que sucederam aos colonizadores europeus – que no caso das
Américas, Nova Zelândia e Austrália eram descendentes destes – se apropriaram
do poder e das terras que antes tinham sido usurpados pelos colonizadores. De
tal modo o fizeram que os povos nativos/originários ou trazidos como escravos
continuaram sujeitos ao mesmo tipo de dominação colonial, quando não foram
exterminados, o que aconteceu particularmente na América do Norte. O conceito
de neocolonialismo refere-se à dependência sobretudo econômica (e, por vezes,
militar) dos novos países em relação à antiga potência colonizadora, enquanto o
conceito de imperialismo se refere ao mesmo tipo de relações entre os países
hegemônicos do Norte global (centro do sistema mundial) e os países dependentes
do Sul global (periferia e semiperiferia do sistema mundial).
Penso que a continuidade dinâmica das relações coloniais assenta
na permanência, ao longo dos últimos cinco séculos, de três modos principais de
dominação: capitalismo (desigualdade classista), colonialismo (desigualdade
etno-racista) e patriarcado (desigualdade sexista e redução da diversidade de
gênero a homens e mulheres). Todos estes modos de dominação foram concomitantes
de epistemicídio (desqualificação dos saberes não eurocêntricos como residuais,
atrasados ou mesmo perigosos e blasfemos). Tanto o colonialismo como o
patriarcado existiram muito antes do capitalismo e exercidos por outros povos
que não os europeus, mas foram profundamente reconfigurados a partir do momento
em que foram articulados com o capitalismo. Por outro lado, estas formas de
dominação também vigoraram e vigoram no interior dos antigos países
colonizadores, ainda que de modos muito diferentes. As independências políticas
alteraram (com intensidades diversas) estas três dominações, mas não as
eliminaram. O modo como as dominações se dispuseram nas colônias e antigas
colônias teve as seguintes características gerais.
A ferida colonial
Supressão epistemológica: A supressão ou
negação de todos os conhecimentos discrepantes com o conhecimento religioso e
científico trazido pelos colonizadores, mesmo que tais conhecimentos existissem
desde tempos imemoriais e fossem os que davam sentido à vida das populações.
Quando não suprimidos, esses conhecimentos foram transformados em informação a
ser apropriada e validada pela ciência.
Leia também: O pomo da concórdia https://bit.ly/3AMYz0w
Mito do desenvolvimento: A história dos povos
anterior à invasão colonial foi violentamente interrompida e os povos invadidos
foram forçados a esquecer a sua história e a entrar na história dos
colonizadores, a história mundial como metonímia da história da expansão europeia.
Em relação a esta última, os povos invadidos e mais tarde independentes foram
considerados atrasados, menos desenvolvidos, e incitados a mobilizar-se para se
modernizarem e desenvolverem. Não do modo que quisessem e para os objetivos que
decidissem, mas do modo seguido pelos países colonizadores ou ex-colonizadores
e para os objetivos por eles adotados. Um dia seriam todos igualmente
desenvolvidos, um dia que nunca chegou.
Predominância de exclusões abissais: O
modo como se articularam globalmente as três dominações fez com que nas
colônias e ex-colônias o poder desigual gerado pelo colonialismo (racismo,
roubo de terras, divisão das populações entre assimilados e indígenas) e
patriarcado (sexismo, feminicídio, homofobia) fosse particularmente violento e
atingisse mais populações. O poder assentava na ideia de que as populações
vítimas dele eram compostas por seres naturalmente inferiores, a quem, por essa
razão, não era pensável aplicar o mesmo direito que regulava as relações entre
colonizadores e entre seus descendentes. Essa dualidade jurídica poderia ser
formal ou informal, mas configuraria sempre uma exclusão sem garantias de
proteção eficaz das populações racializadas ou sexualizadas.
Confinamento ao particular e local: As
práticas e os conhecimentos das populações coloniais e ex-coloniais foram
sempre considerados excepções locais ou particulares em relação às práticas e
conhecimentos dos colonizadores e seus descendentes, umas e outros considerados
universais e globais, por mais que fossem, na sua origem, particularismos e
localismos eurocêntricos.
O mito da preguiça: Finalmente, as populações
coloniais e ex-coloniais foram consideradas preguiçosas, pouco produtivas,
avessas ao trabalho árduo, o que “justificou” a escravatura e o trabalho
forçado, modelos de superexploração do trabalho que, sob outras formas,
continuam a vigorar. Ao longo do século XX, os modos de vida destas populações
adquiriram um glamour especial transformado em mercadoria pela indústria global
do turismo.
De tudo isto resultou o que hoje se designa por ferida colonial,
uma ferida que, em realidade, decorre de uma articulação específica entre
capitalismo, colonialismo e patriarcado, caracterizada pela extensão e
intensidade com que as maiorias (muitas vezes designadas como minorias) são tratadas
como seres inferiores e objetos de violência impune. Nos últimos cento e
cinquenta anos, os povos e as populações que foram e continuam sujeitas ao
colonialismo dos europeus e seus descendentes têm vivido uma dura experiência
de oscilações sem fim entre períodos de expectativas de libertação e de vida
digna e períodos de frustração ante o regresso, por vezes agravado, das formas
mais violentas de dominação e de sujeição por parte das elites e sua tríplice
supremacia classista, racial e sexual. A apropriação privada, muitas vezes
violenta e ilegal, de bens comuns – sejam eles recursos naturais, humanos,
institucionais, culturais – parece continuar sem fim à vista.
Luta sem cura?
A ferida colonial impediu que as populações oprimidas pela
tríplice dominação considerassem o seu passado como fechado e, pelo contrário,
o concebessem como uma tarefa ou missão por cumprir. Foi assim que o futuro foi
sendo constituído em promessa da cura da ferida colonial e da violência que ela
constituía. No entanto, em face do ciclo vicioso entre expectativa e
frustração, o futuro próximo foi-se tornando distante. Até chegarmos ao nosso
tempo paradoxal, simultaneamente vertiginoso e estagnado, em que a cura da
ferida colonial parece destinada a ser uma miragem. Não há alternativas? Esta
pergunta faz muito pouco sentido para aqueles e aquelas que diariamente têm de
procurar alternativas para continuar a viver com dignidade, alimentar os filhos
ou sobreviver à violência impune. A razão está em que o ciclo vicioso das
expectativas e frustrações nunca é vicioso para quem luta e enquanto luta. Há
sempre esperança que desta vez seja diferente. A história afinal nunca se
repete. É a esperança que cria a luta e, paradoxalmente, é também a luta que
cria a esperança. Daí que a dominação, por mais injusta e violenta, só se torne
intolerável quando há resistência e luta. Houve progressos? Sim, mas não houve
progresso. A abolição da escravatura foi um progresso, mas foi persistentemente
substituído pelo “trabalho análogo ao trabalho escravo” (designação proposta
pela ONU) que hoje continua a aumentar. Ou seja, muitas das transições que
foram imaginadas como passagem para uma sociedade mais justa, qualitativamente
melhor, foram, de fato, quase sempre momentos de um ciclo, momentos de esperança,
de progresso e de justiça, que logo depois foram seguidos pela reação
conservadora e mesmo violenta das novas e velhas classes dominantes e suas
elites, ciosas dos seus privilégios, com o consequente rosário de retrocessos,
fossem eles o regresso da fome, do autoritarismo, da guerra, da violência
caótica contra as populações oprimidas. Será que tudo volta ao princípio ou tal
ideia é apenas uma construção de intelectuais pessimistas?
Leia também: Razão e emoção
no segundo turno https://bit.ly/3rNUTq9
Se tomarmos o Brasil como exemplo, verificamos que o país
atravessa neste momento um ciclo político conservador de frustração e de
retrocesso social para as classes populares, que é a resposta das classes e
elites dominantes ao ciclo progressista e de esperança que se inaugurou com o
primeiro governo de Lula da Silva. Os avanços na distribuição de rendimento, na
democratização da educação, nos direitos laborais, e nas políticas sociais em
geral começaram a ser contestados a partir de 2016 e a ser ativamente
neutralizados a partir de 2018. Esta fase do ciclo tem hoje no bolsonarismo a
sua expressão mais radical e está longe de estar esgotada, qualquer que seja o
vencedor das eleições de 30 de Outubro. As medidas do período progressista que
mais incomodaram as elites conservadoras (e das classes médias que nelas se
reveem) tiveram a ver com políticas em que o capitalismo, o colonialismo e o
patriarcado mais visivelmente se articulavam, como no que diz respeito aos direitos
laborais das empregadas domésticas (na grande maioria mulheres negras e
pobres), ao sistema de quotas (ações afirmativas) no acesso à universidade que
beneficiaram maioritariamente os filhos de famílias afrodescendentes pobres, ou
ainda às leis que alteraram o regime das sexualidades e o impacto que tiveram
nas concepções tradicionais de família (casamento entre pessoas do mesmo sexo).
De algum modo, esta mudança de ciclo teve no passado uma outra versão quando a
fase progressista dos governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart (que
incluía a reforma agrária) teve como resposta conservadora o golpe de 1964 e a
ditadura militar que duraria vinte anos.
Foi assim até agora. Continuará a ser no futuro? Para os que
sofrem na pele os retrocessos e a violência, a luta recomeça e assim os pais do
desespero geram filhos da esperança. Acontece que nas últimas décadas houve uma
mudança significativa no modo como os ciclos da esperança e do medo, da
expectativa e da frustração, são vividos pelas populações oprimidas. Essa
mudança deveu-se a duas condições históricas novas. Por um lado, a democracia
liberal, que até à década de 1980 era concebida como um regime que exigia
algumas pré-condições para se implantar e consolidar, (reforma agrária,
existência de classes médias, nível de urbanização), passou a partir de então a
ser concebida como não exigindo quaisquer pré-condições e, pelo contrário, como
sendo a pré-condição da legitimidade para qualquer sistema político. A
democracia, uma vez esvaziada dos seus objetivos sociais, permite uma oscilação
temporalmente delimitada entre expectativa e frustração. A opção entre
partidos, por mais aparente que seja o seu impacto na vida concretas das
pessoas, assume sempre a grande dramaticidade das noites eleitorais, o que lhe confere
renovada realidade. Por outro lado, a revolução das tecnologias de informação e
de comunicação veio criar condições para um controle ideológico das
subjetividades sem precedentes, que as forças de direita e de extrema-direita,
quase sempre associadas às religiões evangélicas fundamentalistas (sobretudo
pentecostais), souberam explorar muito mais intensamente que as forças
progressistas. O medo e a esperança, a frustração e a expectativa passaram a
ser mercadorias psíquicas produzidas incessantemente pelas indústrias profanas
e religiosas da subjetividade. A tentativa de destruir a memória visa
transformar o medo e a esperança em posições em jogos de vídeo.
A luta pela cura
Este quadro mostra a dimensão das tarefas necessárias para
inverter o movimento conservador dos ciclos e, sobretudo, para converter os
ciclos em espirais em que se vão consolidando práticas de vida livre, justa,
digna para grupos populacionais cada vez mais vastos. Por mais abstrato que tal
pareça, no centro das tarefas está a luta por justiça epistêmica para que as
populações mais fustigadas pela dominação capitalista, racista e sexista possam
representar o mundo como seu e assim lutar pelas transformações que melhor as
defendam dos empresários da manipulação do medo e da esperança.
Leia também: A frente ampla diante da nação dividida https://bit.ly/3EWSIbq
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