Para um léxico da democracia: o Brasil vai pedir as
atas da Geórgia?
Rita Coitinho/Opera
Mundi
Poderíamos perguntar por que o desrespeito de Macron às eleições é tratado com normalidade, ou se o Brasil irá condicionar seu reconhecimento das eleições na Geórgia à entrega de atas.
“A coragem hoje não consiste mais em atacar governos, mas em defendê-los”[1]
Há um livro primoroso de Domenico Losurdo chamado “A linguagem do
império – léxico da ideologia estadunidense”[2]. Nele, o filósofo italiano
disseca os termos preferidos dos diplomatas, acadêmicos e jornalistas nos
artigos, livros e notícias sobre os temas que interessam à Política Externa dos
EUA: terrorismo, fundamentalismo, antiamericanismo, antissemitismo,
antissionismo, filo islamismo e o “ódio contra o ocidente”, mostrando que o
rigor teórico está longe de ser o principal critério na adoção, pelos experts,
das categorias. Estas são mobilizadas, na realidade, “para rotular o inimigo e
seus cúmplices e, portanto, empunhadas e brandidas como armas de guerra”.
Não era o tema deste livro de Losurdo, mas de minha leitura de muitas de
suas obras depreendo que ele estaria de acordo, se ainda estivesse entre nós,
com a organização de mais um léxico onde analisaríamos os termos democracia,
respeito às instituições, eleições limpas, autocracia e ditadura. Na verdade o
próprio Losurdo já fizera algo semelhante, ao dedicar-se a elucidar o sentido
verdadeiro do liberalismo em mais de uma obra[3], bem como o sentido da
oposição entre a democracia ocidental e a ditadura (da URSS e da China)[4].
No novo léxico, poderíamos começar nos perguntando sobre “respeito às instituições”
e nele poderíamos estudar por que o desrespeito de Emmanuel Macron à maioria de
esquerda, nomeando um primeiro-ministro não indicado pelo bloco majoritário –
Michel Barnier – é tratado pela mídia monopolista como um movimento “permitido
pela constituição”, como pode-se ler, por exemplo, no portal das organizações
Globo.
Protestos ocorrem na França após o presidente Macron ignorar o resultado
das urnas e nomear um primeiro-ministro de direita. "Ei, Manu,
votamos!", diz o cartaz. Foto: Manon Cruz / Reuters.
Sobre “eleições limpas” teríamos muitos casos a analisar em nosso
léxico. Fiquemos com os mais recentes: em 2020, quando Biden foi proclamado
vencedor das eleições nos EUA, Donald Trump, que buscava a reeleição, não
reconheceu o resultado e acusou os Democratas de fraude (igual à direita da
Venezuela e igual ao Bolsonaro, no Brasil). No entanto, as manchetes dos
grandes canais tratavam do seguinte modo: Trump acusa fraude, sem provas, como
é o caso das manchetes da BBC, do El País, do Uol e tantos outros.
Quando se trata da Venezuela, no entanto, a falta de provas da oposição
é mero detalhe. A despeito dos relatos dos observadores internacionais, como a
insuspeita Associação de Juristas pela Democracia, os grandes veículos das
Américas e da Europa agiram em uníssono, condenando, antes mesmo da verificação
pelo tribunal eleitoral, a falta de lisura do processo. Depois dos trabalhos do
tribunal eleitoral e da confirmação do resultado, nenhum dos acusadores mudou
de posição, incluindo o governo do Brasil. E acusam com base em quais
elementos? Na palavra dos derrotados. Ora, se a palavra dos derrotados sempre
valesse, as eleições em todos os países do mundo tornar-se-iam inviáveis. A não
ser, é claro, que o adversário fosse sempre o PT, sempre pronto a reconhecer a
derrota.
Aí é que entra o outro termo que precisaremos dissecar no nosso léxico:
autocracia. Segundo o léxico dos jornalões, do mainstream universitário
(chancelado pelos rankings e critérios criados nos EUA e copiados em todo o
mundo, com destaque para o Brasil) e agora também de acordo com a chancelaria
brasileira, são autocracias todos aqueles governos em que, mesmo havendo
eleições, vence sempre o mesmo partido. Até que isso faz algum sentido, no
entanto, por que é que os EUA, onde se revezam apenas dois partidos e onde os
organizadores de movimentos contestatórios amargam penas de mais de 50 anos e,
ainda, são sempre integrantes das mesmas classes sociais os eleitos, não é uma
autocracia? Com todos esses complicadores, essa categoria vai dar um trabalho
enorme para ser destrinchada. Junto a ela, é claro, está o seu oposto:
democracia: democracia plena; democracia participativa; democracia
plebiscitária; democracia popular. Por onde começar? Fato é que o palavreado
dos mass media e dos experts já tem a sua definição formada: democracias são os
sistemas de governo em que os eleitos não ameaçam a hegemonia dos EUA. Do mesmo
modo, o regime bipartidário de ricos dos EUA é um “exemplo de democracia” e
quem não concorda com isso não sabe nada de ciência política.
Vamos ao exemplo mais recente de todos: as eleições na Geórgia do dia
26/10. Como nos informa a revista Carta Capital, “o partido do governo na
Geórgia, Sonho Georgiano, venceu as eleições” e logo em seguida o partido
derrotado acusou fraude. Imediatamente, segundo a mesma reportagem,
observadores do Parlamento Europeu alertaram para irregularidades e um “recuo
da democracia” no país. Os EUA já se pronunciaram, “preocupados” com a
democracia no país que – vejam só que coincidência! – faz fronteira com a
Rússia. Analistas dos grandes jornais e alguns experts já se apressaram em
denominar o partido vencedor como vinculado a uma autocracia, com laços com o
governo de Putin. Logo, um punhado de autocratas. E, enquanto “autocratas
vinculados à Rússia”, não podem ter o direito de ingressar na União Europeia.
E já que a oposição na Geórgia está em pé de guerra, fica o
questionamento para o Itamaraty, que agora também acumula a função de agência
verificadora de eleições “limpas”: o Brasil já está pronto para condicionar seu
reconhecimento do novo governo georgiano à entrega das atas?
**Rita Coitinho é doutora em Geografia e secretária geral do Centro
Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz).*
Notas:
[1] Frase copiada por Hegel de uma obra
sobre a derrubada do antigo regime na Espanha em 1820. Citado em LOSURDO,
Domenico. A questão comunista – história e futuro de uma ideia. Tradução de
Rita Coitinho. São Paulo: Boitempo, 2022.
[2] LOSURDO, Domenico. A linguagem do
império – léxico da ideologia estadunidense. Tradução de Jaime A. Clasen. São
Paulo: Boitempo, 2010.
[3] Por exemplo em LOSURDO, Domenico.
Contra-história do liberalismo. Tradução de Giovanni Semeraro. São Paulo:
Ideias e Letras, 2005.
[4] Em LOSURDO, Domenico. A questão
comunista – história e futuro de uma ideia. Tradução de Rita Coitinho. São
Paulo: Boitempo, 2022.
Leia sobre a Venezuela e a integração sul-americana https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/11/brasil-x-venezuela-implicacoes.html?m=1
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