Alemanha: direita revela fadiga, mas vence. Extrema-direita cresce e esquerda se levanta como polo de resistência
O desafio do novo governo será responder ao anseio de muitos alemães e europeus por paz, segurança, estabilidade política e econômica.
Editorial do 'Vermelho'
O resultado das eleições na Alemanha revela a dimensão da crise econômica, social e política que se espalha pela Europa, decorrência, por um lado, de, a ferro e fogo, se manter os ditames do neoliberalismo, e, por outro, da subordinação dos governos da região à lógica de guerra dos Estados Unidos via Organização do Atlântico Norte (Otan). A resultante é uma Alemanha, até então o motor econômico da Europa, em renitente recessão, que provoca acentuada queda da qualidade de vida do povo.
Dessa circunstância emerge na Alemanha o que se passa na França, Itália, Áustria e em outros países do Velho Mundo: desgaste crescente dos partidos da corroída ordem neoliberal. No âmbito dessa perda de legitimidade do status quo de dominação capitalista, se irrompe a extrema-direita, o neofascismo, que, numa crescente perigosa, ganha tração social e aumento o número de votos. A esquerda alemã, mesmo em duro processo de acumulação de força, ainda se refazendo de uma divisão recente, se apresenta como um agrupamento consequente e combativo de enfrentamento à extrema-direita, de defesa da democracia e dos direitos do povo.
Com estes parâmetros, vejamos as particularidades das eleições alemãs.
O comparecimento às urnas ultrapassou 80% dos quase sessenta milhões de eleitores, que votaram para substituir a coalizão “semáforo”, formada pelo Partido Social-Democrata (SPD) – vermelho –, pelo Partido Democrático Livre – amarelo – e os Verdes. A União Democrata-Cristã (CDU), liderada por Friedrich Merz, em aliança com o partido-irmão União Social-Cristã (CSU) – restrito ao estado da Baviera – obteve 28,5% dos votos.
A Alternativa para a Alemanha (AfD), de extrema-direita, obteve o segundo lugar, com 20,8%, dos votos, o dobro da votação das últimas eleições, em 2021, e o melhor resultado de um partido de extrema-direita desde a Segunda Guerra Mundial.
O Partido Social-Democrata, o SPD do atual chanceler Olaf Scholz, ficou em terceiro lugar, com 16,4% dos votos, o pior resultado desde 1887. Os Verdes, do ex-vice-chanceler Habeck, da coligação com o SPD, também registaram quedas e obtiveram 11,6% dos votos.
Já o Die Linke (A Esquerda) pulou de 5% dos votos de há quatro anos para 8,8%.
Lars Klingbeil, um dos co-líder do SPD, deverá tornar-se o novo presidente do parlamento alemão e já se declarou aberto a conversações de coligação do seu partido com a CDU, formando a chamada “grande coligação”. Mas será preciso superar uma controvérsia interna, decorrente de desconfianças em Friedrich Merz depois que ele recorreu ao AfD para aprovar propostas duras em matéria de imigração durante a campanha eleitoral, rompendo a linha tácita de isolamento da extrema-direita desde o fim do regime nazista.
O desafio do novo governo será responder ao anseio de muitos alemães e europeus por paz, segurança, estabilidade política e econômica, numa economia que sofre fortes pressões pela continuidade do desmonte do Estado de bem-estar social. Enfrentará também regras da geopolítica ditadas pelo novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que põem em xeque as perspectivas do forte apoio da Alemanha à guerra na Ucrânia diante da aproximação entre Estados Unidos e Rússia. Entre os membros da Otan, a Alemanha responde pela maior parte dos custos da guerra.
Principal economia da região, altamente dependente do setor de exportação, o país não consegue se levantar, com dificuldades estruturais, sistêmicas. O Leste sofre com graves os problemas de infraestruturas, mas o problema é cada vez mais visível em toda a Alemanha. Desde a pandemia da Covid-19, o país perdeu cerca de 250 mil postos de trabalho no setor da indústria, um dos mais afetados pela crise, responsável por empregar em torno de sete milhões de pessoas. Empresas como Volkswagen, Bosch e Ford promoveram milhares de cortes de postos de trabalho.
Em 2024, a economia sofreu contração pelo segundo ano consecutivo e fechou com recuo de 0,2% no Produto Interno Bruto (PIB), após queda de 0,3% em 2023, condição que deu à Alemanha a definição de “doente europeu”. As exportações de bens e serviços recuaram de forma acentuada, com queda de 2,2% no último trimestre de 2024 em relação ao trimestre anterior. As causas apontadas são a crescente concorrência do exterior e os altos custos de energia, sobretudo pela mudança da matriz energética depois que a Alemanha impôs sanções à Rússia, um dos motivos dos altos preços da energia e da consequente subida do custo de vida.
Esse cenário de crise econômica e social beneficiou o partido de extrema-direita, o AfD, principalmente no Leste, região com índices de crescimento econômico menor e desemprego maiores, segundo a Agência Federal de Emprego da Alemanha. Há também menor tradição de imigração, gerando, consequentemente, mais intolerância com os imigrantes. Uma das principais bandeiras do AfD é a expulsão em massa de imigrantes, ideia que ganhou espaço devido à crise econômica e a manipulação pelas redes sociais de atentados cometidos por imigrantes.
O apoio da extrema-direita dos Estados Unidos também influenciou no resultado. O proprietário da rede social X, Elon Musk, por exemplo, participou remotamente de um comício do partido, concedeu entrevista em sua rede social com a atual líder do AfD, Alice Weidel, e disse que a legenda é a única que “pode salvar a Alemanha”.
A tática de Trump e seus aliados consiste em apoiar ostensivamente a extrema-direita para que ela possa adquirir força e representar os interesses dos Estados Unidos, assumindo governos ou não, e enfraquecer as forças políticas que a eles não se subordinam. Buscam criar condições para que essas forças tenham espaços nos parlamentos e mais recursos financeiros, tática que pode ser vista sobretudo no mapa europeu, pontilhado de movimentos com esse perfil, apoiados pelo trumpismo, um processo que traz em si a contradição entre a subordinação e o sentimento patriótico da Europa, com potencial para desgastar a extrema-direita.
Em contraposição à grave ameaça do avanço da extrema-direita, a campanha do Die Linke, que resultou no seu avanço significativo, é um feito relevante que se soma ao desempenho, também importante, da esquerda nas últimas eleições na França.
“A Esquerda” realizou uma contundente campanha antifascista e diante da vacilação de setores da direita em relação AfD foi vista como uma indispensável salvaguarda à democracia alemã enquanto força consequente e combativa ao neonazismo.
Mas, além dessa bandeira geral, o Die Linke definiu uma plataforma voltada para as demandas concretas do povo, como o preço dos aluguéis e o direito à moradia, extinção do imposto de alimentos básicos em resposta à carestia e adoção de um imposto sobre a riqueza.
A interação entre uma eficaz campanha nas redes sociais, que conquistou forte eco na juventude, com uma obstinada e massiva operação “porta em porta” que abarcou mais de 500 mil residências, completou as razões principais do importante êxito do Die Linke.
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