Oba, agora sou meu
patrão! Afinal, quem precisa de direitos?
Cláudio Carraly*
Uma das operações discursivas mais bem-sucedidas das últimas décadas foi
a transformação semântica da precarização do trabalho no palatável e amplo
termo de "empreendedorismo". O que antes era inequivocamente
reconhecido como degradação das condições mínimas de qualidade laboral ganhou
uma nova roupagem linguística e um verniz midiático que não apenas mascarou a
realidade, mas a tornou desejável aos mais incautos.
O chamado “rebranding” que é o ato de ressignificar a imagem de uma
empresa ou produto, ou seja, uma estratégia planejada, cujo objetivo é mudar a
percepção do público com relação à marca. No caso da transformação de
precarização do trabalho em empreendedorismo foi profundamente exitosa, a
instabilidade virou "flexibilidade". A ausência total de direitos
trabalhistas se tornou "liberdade". A transferência integral do risco
econômico para o trabalhador foi rebatizada como "ser dono do próprio
negócio". As jornadas sem limite se transformaram em "mentalidade empreendedora".
A falta de proteção social passou a ser "autonomia profissional".
Esta não foi uma mudança acidental de vocabulário, mas uma estratégia
deliberada de ressignificação. O discurso empreendedor capturou aspirações
legítimas da humanidade, como, autonomia, criatividade, realização pessoal,
controle sobre a própria trajetória, e as utilizou para legitimar condições de
trabalho que, sob qualquer outro nome, seriam consideradas inaceitáveis e que
haviam sido superadas há muito tempo por lutas históricas.
O aspecto mais perverso desta operação é sua dimensão psicológica, ao
transformar precarização em empreendedorismo, o sistema transferiu não apenas
os riscos econômicos, mas também a responsabilidade moral para o indivíduo. Se
você não prospera como "empreendedor", não é porque as condições
estruturais são adversas é porque você não teve a "mentalidade
certa", não foi suficientemente "resiliente", não se esforçou o
bastante. então a culpa é toda sua, e não do sistema, muito menos do verdadeiro
dono do negócio que são bilionárias empresas que operam os aplicativos.
Esta narrativa individualiza problemas que são fundamentalmente
coletivos e estruturais no capitalismo. Ela impede a formação de consciência de
classe ao transformar trabalhadores precarizados em "pequenos
empresários" que competem entre si, em vez de se organizarem coletivamente
por melhores condições de trabalho exigindo melhorias de quem realmente lucra
com o modelo de negócios.
O sucesso desta operação discursiva foi notável, mesmo pessoas com
formação crítica, que em outros contextos identificariam facilmente processos
de exploração dos trabalhadores, passaram a reproduzir e celebrar a nova
linguagem empreendedora. Cursos superiores criaram disciplinas de
"empreendedorismo". Políticas públicas adotaram o vocabulário da
"economia criativa" e do "microempreendedorismo", todos
reproduzindo ativamente o manual de repaginação do trabalho precário e sem
garantias. A própria esquerda, muitas vezes, abraçou acriticamente estas
narrativas, falando em "empreendedorismo social" ou "economia
solidária" sem perceber que, ao fazê-lo, legitimava a lógica primária do
que pretendia ou deveria combater.
Logicamente Isso não significa que todo empreendedorismo seja uma farsa
ou que não existam casos genuínos de inovação e criação de valor de jornadas
pessoais. Há diferenças qualitativas entre o pequeno comerciante que constrói
um negócio sólido, o inovador que desenvolve soluções originais, e o
trabalhador uberizado que "empreende" para sobreviver sem direitos e
apenas com muitos deveres sem nem perceber que os tem em abundancia, mas sem a
contrapartida dos direitos.
O problema surge quando o termo "empreendedorismo" é usado
indiscriminadamente para descrever situações que são, na essência, trabalho
assalariado disfarçado ou a precarização pura e simples. Quando um entregador
de aplicativo é chamado de "parceiro empreendedor" enquanto trabalha
12 horas por dia sem férias, 13º salário, licença paternidade ou maternidade,
em um regime de escala de trabalho de 7x7, estamos diante de um eufemismo que
serve apenas para nublar a mais que hedionda exploração.
Reconhecer e desmontar esta operação discursiva é mais que um exercício
acadêmico, é uma urgência política. Palavras não são neutras elas moldam o que
vemos, o que aceitamos e até o que ousamos contestar. Quando aceitamos chamar
de “empreendedor” quem, na prática, é privado de direitos fundamentais e
submetido a jornadas brutais, naturalizamos a desigualdade e colaboramos com
sua perpetuação.
A tarefa agora é dupla: devolver às palavras seu sentido real e
reconstruir o imaginário coletivo sobre o que é trabalho digno. Isso significa
expor, sem eufemismos, cada instância em que a exploração se disfarça de
“autonomia”, e recolocar o debate sobre direitos trabalhistas no centro da
agenda pública. Esse debate vem sendo perdido a quase uma década, a reforma trabalhista
aprovada em 2016 que foi vendida como a panaceia que resolveria todas questões
fundamentais do desemprego, apenas desobrigou os patrões e não criou nenhuma
onda de empregabilidade, pelo contrário, desempregou milhares e alguns que
viriam a ser recontratados voltaram sob as novas condições impostas pela
reforma que esmagou seus direitos.
Não basta indignar-se em privado é preciso disputar o vocabulário, os
símbolos e as narrativas, seja nas ruas, nas redes, nas escolas, nas mesas de
negociação, igrejas. Somente assim a promessa de liberdade e autonomia deixará
de ser retórica vazia e poderá se tornar conquista concreta, o contrário disso
é aceitar viver num país onde “empreender” virou sinônimo de sobreviver
sozinho, carregando nas costas o peso de um sistema perverso que só muda para
nadar mudar.
*Cláudio Carraly, advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos
de Pernambuco
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Na cena política, placas tectônicas se movem https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/minha-opiniao_4.html
Um comentário:
O mais degradante é o entregador de comida que usa bicicleta alugada
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