Na Folha de S. Paulo, por Luiz Gonza Belluzzo
Pane ideológica
Além do bloqueio do crédito, a crise planetária também ameaça paralisar os cérebros, até mesmo os bem-dotados
Durante a semana, a crise financeira ganhou velocidade. Em sua pedagogia truculenta, ensinou aos desavisados e aos nefelibatas que a paralisia no sistema de crédito causa danos consideráveis ao mundo "real". Os bancos não emprestam, as empresas reduzem a produção e o emprego, a atividade econômica afunda e, finalmente, os bancos não recebem o dinheiro que emprestaram antes da tormenta.
As certezas dos analistas mais certeiros desmoronam. Um deles proclamava na televisão: "Os investidores são racionais, mas estão em pânico". Imaginei que antes da emboscada do "subprime" e de outros créditos alavancados, os investidores racionais estivessem apenas eufóricos em sua peculiar racionalidade.
Enquanto arengavam os oráculos, transtornados por incertezas e infortúnios, uma pulga intrometida desembarcou atrás de minha orelha. A Pulex irritans esmerou-se em insinuações: além do bloqueio do crédito, a crise planetária também ameaça paralisar os cérebros, até mesmo os bem-dotados -para não falar do meu, apenas mediano. O pânico dos mercados induziu à pane na razão. O ineditismo dos acontecimentos abalroa seus modelos e faz naufragar suas previsões. Desconcertados, os sábios de ontem embarcam em hipóteses exóticas e peregrinas, como as que atribuem responsabilidade aos devedores "ninja" ("no income", "no job", "no asset"), gente irresponsável que não deveria aceitar os empréstimos gentilmente oferecidos por bancos generosos. A culpa é, afinal, dos políticos que estimularam os créditos predatórios.
A pane cerebral afeta com particular virulência o pensamento imune à experiência histórica. Percebo resmungos e muxoxos quando alguém menciona os "anos dourados", a era em que o capitalismo juntou prosperidade, avanço tecnológico, inovação institucional e redução das desigualdades. Esse período, assinala o economista Kenneth Rogoff, registrou a mais baixa freqüência de crises financeiras e de crédito, desde o século 19. Não escaparia ao crítico desconfiado que o sucesso do "modelo" do pós-Guerra possa ter nascido de um arranjo virtuoso entre a democracia e o capitalismo.
Depois de 30 anos de progresso material, redução das desigualdades nos países centrais e altas taxas de crescimento na América Latina e na Ásia emergente, o vento virou. A estagflação dos anos 1970 foi entendida como uma advertência e uma recomendação: era preciso dar adeus a tudo aquilo. O mal, como sempre, era o intervencionismo do Estado, o poder dos sindicatos, o controle dos mercados financeiros, os obstáculos ao livre movimento de capitais.
Não por acaso, há espanto e inquietação, além de alívio naturalmente, com a ousadia de Gordon Browm, o primeiro-ministro da pérfida Albion. Ele não hesitou em adquirir participação acionária nos periclitantes bancos ingleses. Foi seguido pelos colegas europeus. Convenceu Paulson e Bernanke de que essa era a melhor solução. Há fundados receios, entre os sobreviventes do naufrágio financeiro, de que o bote salva-vidas do Estado seja baixado por políticos populistas para resgatar a turma do "andar de baixo".
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