Política de leitura, linguagem e a (anti)democratização do espaço urbano
Carmen Lúcia Bezerra Bandeira*
Na última quarta-feira à noite (12 de abril) compareci a uma biblioteca comunitária para assistir à atividade Encontro com o poeta, que deveria ter sido inaugurada, mas, por um ruído de comunicação, acabou não acontecendo.
As crianças ficaram frustradas e eu também, mas, por outro lado, pude testemunhar uma sucessão de fatos dramáticos relacionados ao cotidiano de uma biblioteca comunitária, que não podem deixar de ser considerados pelos gestores de políticas públicas, uma vez que dizem respeito ao propósito da democratização do acesso à leitura e rebatem diretamente no exercício de compartilhamento das linguagens, no aprendizado do uso coletivo dos bens culturais e na apropriação democrática do espaço urbano.
O aspecto que me chamou a atenção, de imediato, foi a quantidade de crianças, inclusive muito pequenas, que procuram o espaço da biblioteca comunitária à noite. No entanto, o lugar é tão pequeno, que não comporta mais do que quinze crianças em seu interior e por isso, várias tiveram que voltar para casa, sob a justa alegação das mediadoras de leitura de que não havia mais vagas.
Vi uma criança de mais ou menos seis anos, voltar pra casa chorando, segurando na mão da irmã mais velha e fiquei entristecida ao pensar que precisamos de tragédias iguais a da escola do Realengo, para produzir notícias sensacionalistas e nos indignar, pois perdemos, ao que parece, a capacidade de nos sensibilizarmos diante da violência velada do dia a dia, que de tão naturalizada, torna-se dificilmente percebida.
Fiquei a me perguntar como é possível dimensionar ou dar visibilidade à violência contra uma criança de seis anos, que para ter acesso a um livro de literatura e ouvir uma história, precisa sair de casa à noite, quando o livro deveria estar ao seu encalço, numa pequena estante no seu quarto. Pra ela ler ou folhear as páginas, sozinha, interagindo com as imagens e as palavras, se esse for o seu desejo; ou pedir à mãe, ao pai, ou à irmã mais velha para ler ou contar história para ela. E poder comentar, alimentar a imaginação e povoar os sonhos com as aventuras e os personagens das histórias.
Mas quantas crianças dispõem desse ambiente doméstico, com dependências básicas como um quarto, uma cama, estante com livros de histórias e uma mãe, ou um pai, ou um irmão / uma irmã maior, que conte história para elas antes de dormir?
Quem teve o privilégio do acesso a ambientes domésticos, impregnados de livros, jornais, revistas e conviveu com adultos que naturalmente liam e escreviam, não tem dúvida de que este é o caminho privilegiado de acesso ao mundo letrado.
O difícil, talvez, seja imaginar que a maioria das crianças não tem livro de literatura infantil ao seu alcance nas próprias casas. Além de relacionar o impacto direto desse fator com a questão da repetência escolar; com o desafio enfrentado pelos professores das escolas públicas para ensinar a ler a quem não convive naturalmente com o universo das letras.
Por isso, doeu ver a menina que por não ter livros de histórias em casa procurou a biblioteca comunitária para ter acesso ao patrimônio universal que são os clássicos da literatura, - e que, por direito, todas as crianças deveriam conhecer desde a mais tenra idade, como advoga a escritora Ana Maria Machado - e recebeu um NÃO, pela simples inexistência de vaga.
Ela voltou chorando, certamente porque também não conta com o espaço da rua, que é exíguo para a convivência livre com as outras crianças; para brincar de pega, de cantar e tirar verso na roda; para compartilhar histórias contadas pelos adultos, nas noites de lua, sob o céu estrelado.
Se na casa falta o quarto e não tem lugar na biblioteca, a rua também é estreita, esburacada, pouco iluminadas e as crianças ficam expostas a tantas ameaças, que de tão óbvias, dispensam detalhamentos.
Por outro lado, eu até que tentei contar história ou fazer leitura compartilhada com as crianças que conseguiram entrar, mas era impossível pedir que se sentassem em círculo, pois o espaço é realmente muito apertado e me impacientei com tanto desconforto!
Para completar, há um excesso de igrejas na rua tão estreita, que fazem suas pregações em volume tão alto que prejudica qualquer esforço de comunicação através da conversa e da voz natural. E sons e televisões provocando uma poluição sonora tão absurda, que fica difícil falar em política de leitura com o tolhimento absoluto do espaço natural da (con) versação.
Fiquei a me perguntar por que os gestores das políticas públicas, os militantes da educação ambiental, os conselhos e a câmara de vereadores não exercem um monitoramento rigoroso ou iniciam um trabalho educativo de peso para fazer valer a já promulgada Lei do Silêncio? Isto tem que valer para as residências, para os bares, carros e bicicletas de som e para as igrejas também!
Foi tão grande o impacto emocional desta experiência que não parei mais de pensar na relevância do espaço da biblioteca pública como indicador de qualidade de uma política de leitura. Faria uma grande diferença se essa política fosse realizada em parceria com outras entidades e envolvesse, inclusive, a qualificação dos ambientes das bibliotecas comunitárias, pois há que se saber ler este sinal, partindo das próprias comunidades, que expressa uma demanda salutar da população pelo direito à leitura, que começa com o espaço da palavra, com o aprendizado do uso expressivo da voz, com o exercício da livre criação poética e literária.
Assim sendo, é mais do que tempo de considerar que uma política de leitura vai muito mais além do que os programas de distribuição de acervos, que na sua maioria são realizados sem fazer estudo do usuário e sem envolvê-lo na escolha; além disso, não leva em conta a situação dos ambientes para receber os livros, seja no que se refere à dimensão espacial; seja no que se refere à formação de pessoal qualificado para realizar os procedimentos de catalogação; seja pra manter um programa cultural e permanente de formação de leitores, envolvendo a apreciação e o desenvolvimento das diferentes linguagens.
Seria muito importante fazer parceria com a universidade (curso de Biblioteconomia, Letras, Educação, Artes), além de outras instituições congêneres, para pensar programas de formação de mediadores e projetos de intervenção cultural que deveriam priorizar o uso expressivo da voz, o exercício da criação literária e poética, a pesquisa da memória e dos mitos locais, a articulação e desenvolvimento das linguagens, o conhecimento e a busca de comunicação com as diferentes culturas.
E para finalizar, reitero a necessidade de eleger a multiplicação das bibliotecas públicas como prioridade estratégica de uma pública de leitura, que devem ser concebidas como espaços de acolhimento para o cidadão e a cidadã, que têm direito ao aprendizagem da boa convivência; à apropriação democrática dos bens culturais e ao uso coletivo do espaço urbano, para se constituir sujeito ao longo do exercício permanente de práticas leitoras, da apreciação das diferentes formas artísticas e da possibilidade de desenvolvimento da própria linguagem.
* Pedagoga e cidadã leitora
Um comentário:
Obrigado, Carmen. É de textos e reflexões assim que andamos precisando. Acho que a formação de leitores deve se dar numa ambiência de afeto, pois só assim ela se perpetuará. Que as bibliotecas percam de vez sua sisudez e se transformem em agradáveis salas de leitura onde o lúdico tenha também o seu espaço.
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