Ocupação
Marco Albertim, no Vermelho
A casa há muito fora
desocupada. As paredes da frente, dos lados e dos fundos, nunca
tiveram o alisado de mãos nem da colher do pedreiro. Secaram sob o sol, não se
desfizeram sob a chuva miúda da Zona da Mata, em Vitória de Santo Antão. Mas os
troncos fincados no chão, as varas amarradas de cima a baixo para firmar o
massapê ainda mole, expunham aqui e ali os nós feito cicatrizes reabertas. As
telhas da lombada mantinham-se inteiras, já as das beiradas, rachadas no meio,
não tinham as pontas e os cacos ainda se mostravam no chão seco, em cima do
outeiro retangular que servira de arrimo às paredes de pouca altura.
Os homens rodearam a casa, conversando
baixo, em conluio com o segredo da noite. O tom de cada conversa, no mesmo
diapasão do canto dos grilos, do rosnado quase brabo dos sapos, tudo, até o
ruído abafado das alpercatas no chão areento, tinha o propósito de acoitar-se
no escuro para fazer no anúncio do dia um festim de pouca duração e fundo
prazer.
Por fim, certos de que a moradia não lhes serviria
para o propósito imediato, e ainda de que o arrombamento de uma porta ou de uma
janela poderia deslustrar a tenção de desbastar o capim verde mas sem serventia
para o gado ausente, sentaram no chão duro da casa de farinha.
O lume do candeeiro deu conta do forno desativado
da casa de farinha. Não se prestou atenção, mas a bandeja redonda e larga na
superfície deixara-se cobrir de uma poeira fina, tão tisnada quanto o barro que
se prestara para abrigar o forno. O cheiro da mandioca se rendera ao frescor do
rio com touceiras de capim na margem, abaixo, na planura de pouca extensão sem
uso nem proveito para pasto.
Joaquim, o mais moço, juntou-se a outros três da
mesma idade. Acendeu o lume de outro candeeiro, e pôs-se a calcular
os próximos passos, assim que o dia desse conta da terra coberta pelo capim
espesso, banhada pela mansidão do rio pronto para regar, nas pontas e na raiz,
o feijão-fradinho, a arrozeira-d'água.
- Quem segura a bandeira? - quis saber Joaquim.
- Eu. Escapei de Camarazal debaixo de bala. Se eu
levar um tiro amanhã, pelo menos me vingo segurando a bandeira.
Tonico tinha a mesma idade de Joaquim, também nos
cabelos o bronze queimado do sarará sem dissimulação.
- Ninguém vai descer o barranco se agachando. Nós
não estamos emboscando a terra. A terra é que ficou descoberta, sem uso. A
terra esperou por nós e nós chegamos para tirar dela o que ela está oferecendo.
Feijão muito e inhame grosso - explicou Joaquim.
Até ali, os homens se mantinham serenos. Enquanto
Joaquim e Tonico e mais dois, reunidos de lado, encostados à curva do forno da
casa de farinha, enxergavam na empreitada o ganho da precisão de um plano
urdido sem uso de lápis ou papel, o resto se entretinha num jogo de
baralho de cujos lados pendiam cerdas escuras do suor das mãos. A casa de
farinha, carece dizer, fora erguida em frente a casa, a pouco menos de dois
metros de sua frente. Talvez por isso, nenhum uso lhe fora
destinado.
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