02 agosto 2014

A vida do jeito que é

Ocupação

Marco Albertim, no Vermelho
A casa há muito fora desocupada. As paredes da frente, dos lados e dos fundos,  nunca tiveram o alisado de mãos nem da colher do pedreiro. Secaram sob o sol, não se desfizeram sob a chuva miúda da Zona da Mata, em Vitória de Santo Antão. Mas os troncos fincados no chão, as varas amarradas de cima a baixo para firmar o massapê ainda mole, expunham aqui e ali os nós feito cicatrizes reabertas. As telhas da lombada mantinham-se inteiras, já as das beiradas, rachadas no meio, não tinham as pontas e os cacos ainda se mostravam no chão seco, em cima do outeiro retangular que servira de arrimo às paredes de pouca altura.
Os homens  rodearam a casa, conversando baixo, em conluio com o segredo da noite. O tom de cada conversa, no mesmo diapasão do canto dos grilos, do rosnado quase brabo dos sapos, tudo, até o ruído abafado das alpercatas no chão areento, tinha o propósito de acoitar-se no escuro para fazer no anúncio do dia um festim de pouca duração e fundo prazer.
Por fim, certos de que a moradia não lhes serviria para o propósito imediato, e ainda de que o arrombamento de uma porta ou de uma janela poderia deslustrar a tenção de desbastar o capim verde mas sem serventia para o gado ausente, sentaram no chão duro da casa de farinha.
O lume do candeeiro deu conta do forno desativado da casa de farinha. Não se prestou atenção, mas a bandeja redonda e larga na superfície deixara-se cobrir de uma poeira fina, tão tisnada quanto o barro que se prestara para abrigar o forno. O cheiro da mandioca se rendera ao frescor do rio com touceiras de capim na margem, abaixo, na planura de pouca extensão sem uso nem proveito para pasto.
Joaquim, o mais moço, juntou-se a outros três da mesma idade. Acendeu  o lume de outro candeeiro, e pôs-se a calcular os próximos passos, assim que o dia desse conta da terra coberta pelo capim espesso, banhada pela mansidão do rio pronto para regar, nas pontas e na raiz, o feijão-fradinho, a arrozeira-d'água.
- Quem segura a bandeira? - quis saber Joaquim.
- Eu. Escapei de Camarazal debaixo de bala. Se eu levar um tiro amanhã, pelo menos me vingo segurando a bandeira.
Tonico tinha a mesma idade de Joaquim, também nos cabelos o bronze queimado do sarará sem dissimulação.
- Ninguém vai descer o barranco se agachando. Nós não estamos emboscando a terra. A terra é que ficou descoberta, sem uso. A terra esperou por nós e nós chegamos para tirar dela o que ela está oferecendo. Feijão muito e inhame grosso - explicou Joaquim.
Até ali, os homens se mantinham serenos. Enquanto Joaquim e Tonico e mais dois, reunidos de lado, encostados à curva do forno da casa de farinha, enxergavam na empreitada o ganho da precisão de um plano urdido sem uso de lápis  ou papel, o resto se entretinha num jogo de baralho de cujos lados pendiam cerdas escuras do suor das mãos. A casa de farinha, carece dizer, fora erguida em frente a casa, a pouco menos de dois metros de sua  frente. Talvez por isso, nenhum uso lhe fora destinado.

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