Um milhão de pessoas com deficiência
Lenin Moreno, no Le Monde Diplomatique
A aprovação, em 2006, da Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência representou um marco na evolução dos direitos humanos e, particularmente, dos direitos de um grande número de indivíduos que durante muito tempo estiveram ausentes de estratégias de desenvolvimento e dos instrumentos de direitos
Se analisarmos os temas globais tratados como prioridade no âmbito dos direitos humanos, veremos que as pessoas com deficiência foram as últimas a serem contempladas. Nos diversos debates e na evolução dos modelos políticos e socioeconômicos dos Estados, as pessoas com deficiência estavam ausentes – e em muitos casos ainda estão – das políticas públicas. Aos poucos, foram atendidas de forma progressiva como um “grupo vulnerável” e uma “carga social” que o Estado deveria contemplar. O enfoque dos direitos humanos foi fundamental para iniciar uma transformação profunda nas políticas dirigidas para acabar com uma história de exclusão. É nesse ponto que radica, sem dúvida, a relevância da Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada em 2006.
Na ocasião, 153 países ratificaram o tratado, vigente desde maio de 2008. Esse acordo implica para cada Estado signatário o reconhecimento de que a atenção prioritária a esse grupo é uma obrigação nacional. Porém, o processo de adesão é relativamente recente, e o impacto nas leis e políticas públicas ainda é incipiente em muitos países.
Apesar dos avanços nas últimas décadas, ainda há muito por fazer em termos de políticas públicas para que o conceito de justiça social, igualdade jurídica e de solidariedade inclua as pessoas com deficiência, assim como foi feito com outros grupos que, por suas características particulares, também precisaram de legislação e políticas específicas para que suas oportunidades se equiparassem com o resto da sociedade.
As organizações de e para as pessoas com deficiência conseguiram mobilizar apoios significativos para inserir seus direitos na agenda internacional. A Convenção de 2006 é resultado desse esforço. Múltiplas redes nacionais, regionais e internacionais agrupam pessoas de forte compromisso e alto nível profissional que, com anos de análises e experiência, são as melhores conhecedoras do tipo de normas e políticas necessárias para tornar o mundo mais inclusivo e acessível a milhões de pessoas com deficiência. Infelizmente, a participação desses indivíduos ainda é escassa nos espaços intergovernamentais onde se definem acordos de relevância global na agenda de desenvolvimento e de direitos humanos, assim como nos espaços de formulação de políticas públicas nacionais.
Talvez pelos poucos espaços de participação internacional, esses grupos estiveram ausentes da Declaração do Milênio no ano 2000 e nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM). O mundo se comprometeu a acabar com a pobreza e com a fome, universalizar o ensino fundamental, alcançar a igualdade entre os sexos, reduzir a mortalidade das crianças menores de 5 anos, melhorar a saúde materna, combater a aids, a malária e outras doenças, garantir a sustentabilidade do meio ambiente e fomentar uma aliança mundial para o desenvolvimento.
Dezenas de indicadores mostraram que, para impulsionar estratégias nacionais dirigidas a esses objetivos e alcançá-los de forma integral, seria necessário identificar as metas e os indicadores que serviram de guia aos Estados para que os ODM também contemplassem as pessoas com deficiência.
Como bem assinalou o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, “os ODM apresentam um esforço dirigido para abordar a pobreza mundial. Eles, contudo, não incluíram as pessoas com deficiência, que nem sequer são mencionadas. Apesar dos progressos notáveis em relação ao cumprimento dos ODM, é difícil avaliar se as pessoas com deficiência foram de alguma forma beneficiadas com a aplicação dos Objetivos ou atividades relacionadas”.
A invisibilidade e a discriminação de pessoas com deficiência geram um círculo vicioso de desigualdade, iniquidade e pobreza. Para a humanidade do século XXI, isso deveria ser inaceitável. Esse grupo é mais vulnerável à pobreza, e a grande maioria reúne uma ou mais das seguintes características: carece de alimentação adequada; vive em moradias precárias e sem condições de acessibilidade; não tem acesso a água potável e saneamento; carece de dispositivos técnicos de ajuda e assistência pessoal; não recebe atenção adequada de saúde; e está fora dos sistemas educativos. Em resumo, hoje as pessoas com deficiência são as mais pobres entre os mais pobres.
Em setembro de 2015, na sede da ONU, acontece o encontro de chefes de Estado e governo para discutir e aprovar o que será a Agenda de Desenvolvimento pós-2015. Espera-se que, nessa ocasião, as pessoas com deficiência façam parte das decisões e compromissos do evento.
Os governos e a sociedade deveriam assumir pelo menos oito prioridades para assegurar a inclusão e garantir os direitos de pessoas com deficiência:
1)Colocar o desenvolvimento científico e tecnológico a serviço das pessoas com deficiência, ou seja, tornar a ciência e a tecnologia instrumentos solidários que sirvam para melhorar a acessibilidade e a qualidade de vida das pessoas com deficiência e facilitar sua participação na sociedade e seus aportes a ela.
2) Incluir plenamente crianças e jovens com deficiência nos sistemas educativos. Para isso, é necessário transcender a visão de “educação especial” e de integração, por meio da compreensão clara da diversidade das deficiências. Para que o ensino seja verdadeiramente universal, são os sistemas educativos que precisam se adaptar a todos os seus estudantes.
3) Prestar serviços de saúde especializados e acessíveis. As pessoas com deficiência são mais vulneráveis a doenças preveníveis, por isso é preciso haver um sistema de saúde adaptado a suas necessidades.
4) Assegurar a inclusão trabalhista das pessoas com deficiência. O emprego digno é o melhor caminho para sair da pobreza, e milhões de pessoas com deficiência estão esperando contar com mais oportunidades para oferecer todo seu capital humano, sua capacidade e seu compromisso com o desenvolvimento econômico e social.
5)Assegurar a vida e os direitos das pessoas com deficiência em situações de conflito e catástrofes naturais. Infelizmente, o diálogo ainda está longe de ser uma medida prioritária para resolver nossas diferenças – e são muitos os conflitos armados ao redor do mundo. Esses conflitos, além de aumentarem o número de pessoas com deficiência, geram sofrimentos adicionais a quem já está nessa condição. Por outro lado, em situações de desastre e emergências, as pessoas com deficiência requerem medidas especiais de evacuação e atenção.
6) Visibilizar as pessoas com deficiência nas estatísticas nacionais e globais. Uma informação estatística específica e independente de outras é fundamental para desenhar políticas que garantam o gozo pleno de direitos de cada pessoa que vive com algum tipo de deficiência.
7) Construir sociedades acessíveis. Devem ser eliminados quanto antes obstáculos e barreiras que impedem o acesso de pessoas com deficiência ao entorno físico, ao transporte, à tecnologia, à informação e à comunidade.
8)Acabar com a discriminação. Apenas a inclusão plena acabará para sempre com o estigma e a exclusão. Na luta contra a discriminação, os entornos social e familiar desempenham papel determinante.
Essas oito prioridades podem mudar o mundo e saldar essa dívida da sociedade com as pessoas com deficiência. O célebre astrofísico Stephen Hawking, que vive com uma doença motoneuronial e cuja vida foi retratada em um filme recente chamado A teoria de tudo, ponderou: “Percebo que, de muitas formas, sou um afortunado. Posso confiar em uma equipe de assistentes que me permitem viver e trabalhar de forma cômoda e digna. Minha casa e meu local de trabalho são acessíveis para mim. Especialistas em informática me ajudaram com um sistema de comunicação assistida e um sintetizador de voz, que me permitem redigir conferências e documentos, e comunicar-me com distintos públicos”.
O físico completou: “A eliminação de obstáculos liberará o potencial de um grande número de pessoas que têm muito a oferecer ao mundo. Os governos de todo o planeta já não podem ignorar milhões de pessoas com deficiência a quem se nega o acesso à saúde, à reabilitação, ao apoio, à educação, ao emprego; a quem se nega o direito da oportunidade de brilhar”.
Talvez Hawking seja o melhor exemplo do enorme potencial que o mundo está perdendo ao não prestar atenção a cada um e cada uma desse 1 bilhão de seres humanos que constituem a maior minoria da humanidade.
Lenin Moreno é enviado especial das Nações Unidas sobre Deficiência e Acessibilidade e ex-vice-presidente do Equador.
Publicado em Le Monde Diplomatique Brasil, em 6 de Julho de 2015
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