A inércia do Judiciário diante de retrocessos
institucionais deveria ensejar uma discussão sobre o poder.
O
atual momento do país evidencia a insuficiência da vigência, sem efetiva
aplicação, de uma Constituição como a de 1988. A previsão de amplos direitos
oriundos da mobilização social que acompanhou os trabalhos da Assembleia
Constituinte não tem impedido retrocessos autoritários.
O
Judiciário, que poderia exercer papel
protagonista na defesa da democracia e dos direitos humanos, não tem, de modo
geral, conseguido impedir os retrocessos. Tal Poder nega-se, constantemente,
por exemplo, ao diálogo com os movimentos sociais; por sua vez, age
decisivamente no crescimento do Estado policial, lotando, via
decreto de prisões, o sistema carcerário brasileiro.
Cabe,
assim, investigar os fundamentos pelos quais a leitura predominante das normas
jurídicas em vigor, pela atividade jurisdicional, tem favorecido o uso
repressivo dos direitos, em vez de privilegiar seus fins emancipatórios pela
igualdade e liberdade.
Situação
paradoxal - A
tarefa acima colocada não é simples. O Judiciário trabalha sob uma situação
paradoxal que deve ser melhor compreendida.
De
um lado, a Constituição de 1988 proporcionou autonomia do Judiciário, enquanto
Poder de Estado, no mesmo plano do Executivo e do Legislativo. No âmbito desta
autonomia, assegurou ampla independência funcional aos juízes, sob o correto
entendimento de que independência do Judiciário significa também independência
de cada juiz, inclusive perante o tribunal a que se encontra
administrativamente vinculado.
Por
outro lado, a vigência da Constituição não impediu que a estrutura e a composição do Judiciário brasileiro no pós-1988 não sejam
distintas, na essência, da estrutura e composição do superado período
ditatorial.
Estrutura
não democrática -
Lembra-se, nesse aspecto, que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF),
ocupantes da cúpula da atividade jurisdicional, são até hoje nomeados sem
qualquer participação da sociedade civil. No processo de escolha de cada
ministro, os debates democráticos perduram substituídos pelas conversas de
bastidores restritas às elites políticas.
Aliás,
a participação da sociedade civil é praticamente inexistente na administração e
na fiscalização dos tribunais. As ouvidorias são, em geral, compostas somente
por membros do Judiciário; o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de
controle externo, tem sua composição formada apenas por pessoas oriundas das
carreiras jurídicas; a destinação do orçamento também se dá sem a atuação de
qualquer movimento social.
Por
sua vez, os juízes continuam tendo sua vida funcional regida por norma jurídica
imposta pelo ditador Ernesto Geisel em 1979, a Lei Orgânica da Magistratura
Nacional (Loman). Seguindo a lógica da ditadura civil-militar da época em que
entrou em vigor, a Loman trata a carreira da magistratura de modo
hierarquizado, a impedir o debate democrático interno acerca dos rumos do
Judiciário: por isso, em regra, os juízes de 1ª instância sequer podem votar
para as cúpulas dos tribunais a que pertencem.
Composição
não democrática - Se a carreira não se adaptou à Constituição de
1988, a composição da magistratura tampouco alterou-se. Basta lembrar que,
segundo censo publicado pelo CNJ em 2014, apenas 1,4% dos juízes declararam-se pretos e 0,1%
declararam-se indígenas.
Tais
dado revelam que mais de 98% dos juízes brasileiros não são pretos ou
indígenas. Em outras palavras, 98% dos juízes brasileiros possivelmente jamais
sofreram uma abordagem policial em razão da cor da sua pele; 98% dos juízes
brasileiros possivelmente jamais sofreram o temor de perder um pedaço coletivo
de terra que consideram sagrada.
Para
além da experiência de quem não pertence às raças historicamente colonizadas –
e que dão sustento ao que Aníbal Quijano chama de colonialidade do poder –,
esses mesmos juízes são oriundos de um sistema de ensino jurídico absolutamente
acrítico. Trata-se de sistema fundado no positivismo filosófico, originado no
século 19, responsável por uma grave hierarquização dos saberes, que insere o
conhecimento branco e ocidental no topo da pirâmide e o conhecimento, por
exemplo, dos povos originários das Américas na base hierárquica.
Pressão
externa - Para
agravar o quadro acima descrito, o Judiciário tem sofrido forte pressão para
legitimar o crescimento do Estado policial.
Lembra-se
a transmissão de programas policiais por emissoras de rádio e televisão, que festejam
a violência estatal contra pessoas tidas por meras suspeitas da prática de
crimes (em geral, não-brancas) e rechaçam o cumprimento do dever funcional de
juízes que exercem controle rígido para coibir abusos. Tais emissoras
desconsideram, portanto, sua qualidade de meras concessionárias de serviço
público e seu dever de transmissão de programação educativa, na forma exigida
pelo artigo 221 da Constituição.
Por
vezes, a pressão é mais direta. Por exemplo, recentemente um grupo de
Promotores de Justiça representou, perante a Corregedoria Geral de Justiça de
São Paulo, o Juiz de Direito Roberto Corcioli Filho.
O
“fundamento” da representação reside, basicamente, no fato do magistrado
exercer sua independência funcional em favor do controle rigoroso sobre a
atividade policial (para isso, relaxando prisões que entendia ilegais),
promovendo o diálogo em conflitos sociais (designando audiência de conciliação
em caso de reintegração de posse contra sem-tetos) e impedindo o abuso do poder
econômico (vedando o uso de um aplicativo com base na regulação legal à
atividade econômica).
O
momento para uma discussão racional - O atual acirramento dos debates
políticos tem colocado o Judiciário no centro da discussão. O problema é que,
em razão de acusações de práticas abusivas por um ou outro juiz no decorrer da
atual crise política, alguns grupos historicamente defensores dos direitos dos
excluídos têm clamado pela restrição à independência funcional dos magistrados,
como se esta prerrogativa fosse um óbice para o Estado de Direito.
É
preciso ter cautela. Restringir a independência funcional é retirar, por
completo, qualquer possibilidade de uma leitura jurisdicional emancipatória dos
direitos. É também impedir, em definitivo, a possibilidade de decisões
contrárias àqueles que Raymundo Faoro chamava de os donos do poder.
O
foco deve ser outro: combater déficits democráticos, como os acima apontados,
para permitir que a leitura dos direitos privilegie a liberdade e a igualdade.
Nesse sentido, convida-se o leitor a conhecer as propostas da Associação Juízes
para a Democracia para uma Loman
democrática.
A
tentação autoritária é grande em momentos de tensão. É preciso promover uma
discussão racional para adaptar o Judiciário à democracia.
*André
Augusto Salvador Bezerra é mestre e doutorando pelo Programa Interdisciplinar
de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e outras legitimidades da
Universidade de São Paulo (USP). Presidente do Conselho Executivo da Associação
Juízes para a Democracia (AJD).
]Leia mais sobre temas
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