Aderbal Freire-Filho*[foto], Brasil 247
De repente, da multidão verde
amarela que ocupava a Avenida Paulista só restou aquele caminhão pedindo a
volta dos militares. Isto é, a multidão da Paulista agora cabe num caminhão.
Afinal, eram os que tinham uma proposta mais clara e definida: queriam os militares
de volta. Os outros eram os ingênuos e os bandidos. Os ingênuos queriam
derrubar a presidente para acabar com a corrupção. Os bandidos queriam derrubar
a presidente para continuar com a corrupção. Os do caminhão queriam os
militares: ditadura, censura, tortura... e corrupção.
O
pessoal do caminhão continua ativo, como se viu no recente ataque a
Universidade de Brasília. E como se vê, diariamente, nas redes sociais, onde
eles não param de buzinar e gritar seus palavrões, suas ameaças, seu ódio
alucinado. Uma vez, o cronista maior Luís Fernando Veríssimo escreveu que não
participaria nunca de uma manifestação ao lado dessa turma. Luís Fernando via
com clareza o que muita gente, no meio da multidão, não via, fingia que não via
ou não queria ver: o que significava ser aliado dessa turma. Agora que só resta
o caminhão, são poucos os que ainda estão em volta dele ingenuamente. O que
restou da Paulista, em volta do caminhão, é assumidamente a extrema-direita,
esse lugar do espectro político que no Brasil tem ganho um espaço nunca dantes.
Como
se explica que existam hoje tantos colunistas de direita na imprensa, tantos
neo-fascistas destilando ódio na internet, tantos blogs e sites de direita que
inventam mentiras cabeludas para alimentar o discurso extremista? Como tem sido
possível demonizar a esquerda, com acusações bisonhas, do tipo querem fazer do
Brasil uma Venezuela, com calúnias que não resistem a dois neurônios de
atenção, com teses babacas que colocam a esquerda como coisa do passado ,
trazendo para a política o vocabulário da moda e ditando as regras de um Brazil
Fashion Century de direita.
Vendo
isso, penso com saudade no Comunista. Fui um dos maiores amigos do Comunista. O
Comunista sentava em um banco na Praça do Ferreira, na Fortaleza do começo dos
60 e a turma de amigos ia chegando. Uns vinham da última sessão do cinema São
Luiz, outros da zona, alguns das casas das namoradas. Éramos todos bem jovens,
mas existiam uns frequentadores mais velhos. Um desses, ex-juiz de futebol,
tinha os casos mais divertidos para contar. Como o do dia em que, ameaçado de
linchamento pela torcida local numa cidade do interior, teve que reunir os
capitães dos dois times no meio do campo depois do apito final e avisar que o
gol dos locais, que ele tinha anulado no primeiro tempo, estava valendo. Na
mesma faixa etária tinha também o Doutores, que era chamado assim por ser
formado em direito, agronomia e filosofia.
O
Comunista nos emprestava para ler “A necessidade da Arte”, de Ernest Fischer e
sobretudo os “Princípios fundamentais da filosofia”, de Georges Politzer. Era
também o mais inteligente e espirituoso da turma e suas histórias são hoje
lendas que se contam de geração a geração.
Acompanhei
de longe o Comunista até sua morte, há poucos anos. É preciso dizer que a certa
altura ele deixou de ser comunista e uma vez nos demonstrou a evolução do
pensamento de esquerda com uma lucidez e inteligência que está centenas de anos
luz à frente das teses neoliberais da direita estrogonofe (a dos que só
guardaram da esquerda o que não é essencial) e da direita mingau (a dos que
ficaram mesmo velhos de repente). A discussão dessa evolução está na ordem do
dia do pensamento político no mundo inteiro. Longe do caminhão.
Mas
quando muitos partidos comunistas trocaram de nome e de princípios, o
Comunista, revoltado, adotou uma posição oposta a esse desmonte que ele
considerava covarde. Pelo contrário, dizia, era hora de mostrar a importância
da doutrina contra os desvios da prática. E foi aí que me falou de um amigo
dele que estava propondo a criação do PCCPC. Atribuir essa criação a um amigo
era seu jeito modesto de atribuir a outros muitas das suas criações. Não
entendi a sigla e perguntei o que significava. E ele: Partido Comunista
Comunista Pra Caralho.
Muitas
vezes, quando vejo internautas da direita macdonald’s (a juventude
despolitizada) e da hidrófoba direita come-merda (a multidão que se deixa levar
pelos telejornais) xingando os que discordam da ignorância politica de quase
todos eles e mandando matar, mandando hostilizar, repetindo mentiras sem querer
ouvir a verdade, penso no PCCPC.
Penso
na principal, talvez única finalidade que ele ainda teria hoje. Qual seja:
enfrentar de igual para igual a versão atual do Comando de Caça aos Comunistas,
que podia também ter uma nova sigla, CCCCP, isto é Comando de Caça aos
Comunistas Caminhão da Paulista. O PCCPC podia aporrinhar o CCCCP e seus gurus,
tanto ou mais do que o Foro de São Paulo, o bolivarianismo, o MST e todos os
bichos papões que povoam os pesadelos da extrema-direita brasileira.
Imagino
a intervenção nesse conflito entre PCCPC e CCCCP, não de altos conselhos
internacionais, ONU, OTAN, mas de outra agremiação ilustre, a Igreja Comunista
Cristã Científica, do escritor João de Minas, o Mahatma Patiala. Na abertura da
grande reunião pela paz, como determina o parágrafo 20, do capítulo segundo, da
Bíblia da Ciência Divina, livro sagrado do Comunismo Cristão Científico, seria
servida uma boa sopa cristã científica (com muito alho, pois com alho, como
dizia o profeta, “os
hormônios acordam e diante dos hormônios o cérebro é apenas como um criado a
servir, mais ou menos bronco”). Em seguida, o Mahatma Patiala
receberia o espírito do Comunista, que trataria de explicar a doutrina do
PCCPC, isto é, a doutrina PC (Pra Caralho). Do outro lado, os líderes da
extrema-direita falariam da doutrina PNM (Pensamento Neo-Medieval).
Não
acredito que chegassem a um acordo. Mas pelo menos essa tropa de difamadores,
agressores,
fascistóides da extrema-direita correria o risco de ser
excomungada pelo Mahatma Patiala, com uma de suas bulas primorosas na arte de
insultar. Como a bula de excomunhão de um barão da imprensa do seu tempo, que
começava assim: “Tu,
ó rato morto, cavalgado por um percevejo...” Com ele era assim,
alho por alho, dente por dente.
* Diretor e autor teatral, ator e
apresentador
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