Saídas
para evitar colapso civilizatório são evidentes, mas nunca estiveram tão
bloqueadas. A questão crucial: teremos tempo para chegar a um plano B?
Ladislau Dowbor, na Carta Capital
Nick Ferrante, 77 anos, em
Windber, cidade norte-americana na qual 11% da população vive abaixo da linha
da pobreza.
O dinheiro flui para o lugar
errado
Difícil deixar
de pensar que estamos vivendo num circo gigante. Quando sentamos no sofá depois
de um dia bizarro de trabalho e horas de transporte, as novelas surreais na TV
nos dão uma visão geral do jogo global: tantas bombas sobre a Síria, mais
refugiados nas fronteiras, os problemas das grandes finanças, os últimos gols
de Neymar. Ah sim, e quem, depois de Hungria, Grécia, Polônia e Reino Unido,
está ameaçando deixar a União Europeia em nome de ideais nacionais superiores.
É um jogo e
tanto. Relatórios do Crédit Suisse e da Oxfam mostram a grande divisão entre os
donos do jogo e os espectadores: 62 bilionários têm mais riqueza do que os 50%
mais pobres da população mundial. Eles produziram tudo isso?
Evidentemente,
tudo depende de que papel você desempenha no jogo. Em São Paulo, os muito ricos
que habitam o condomínio de Alphaville estão murados em segurança, enquanto os
pobres que vivem na vizinhança se autodenominam Alphavella. Alguém precisa
cortar a grama e entregar as compras.
De acordo com
o relatório global da WWF sobre a destruição da vida selvagem, 52% das
populações de animais não-domesticados desapareceram, durante os 40 anos que
vão de 1970 a 2010. Muitas fontes de água estão contaminadas ou secando. Os
oceanos estão gritando por socorro, o ar condicionado prospera. As florestas
estão sendo derrubadas na Indonésia, que substituiu a Amazônia como a região
número um do mundo em desmatamento. A Europa precisa ter energia renovável, de
carne barata e da beleza do mogno.
A Rede de
Justiça Fiscal revelou que cerca de 30 trilhões de dólares – comparados a um
PIB mundial de US$ 73 trilhões – eram mantidos em paraísos fiscais em 2012. O
Banco de Compensações Internacionais da Basileia mostra que o mercado de
derivativos, o sistema especulativo das principais commodities,
alcançou 630 trilhões de dólares, gerando o efeito iôiô nos preços das
matérias-primas econômicas básicas.
O maior jogo
do planeta envolve grãos, minerais ferrosos e não ferrosos, energia. Essas
commodities estão nas mãos de 16 corporações basicamente, a maior parte delas
sediadas em Genebra, como revelou Jean Ziegler no livro A Suíça lava mais branco.
Não há árbitro neste jogo, estamos num ambiente vigiado. Os franceses têm uma
excelente descrição para os nossos tempos: vivemos une époque
formidable!
Fizemos um
trabalho perfeito em 2015: a avaliação global sobre como financiar o
desenvolvimento em Adis Abeba, as metas do desenvolvimento sustentável para
2030 em Nova York e a cúpula sobre mudanças climáticas em Paris. Os desafios,
soluções e custos foram claramente expostos. Nossa equação global é
suficientemente simples para ser executada: os trilhões em especulação
financeira precisam ser redirecionados para financiar inclusão social e para
promover a mudança de paradigma tecnológico que nos permitirá salvar o planeta.
E a nós mesmos, claro.
Mas são os
lobos de Wall Street que traçaram o código moral para este esporte: Ganância
é ótima!
Afogando em
números - Estamos
nos afogando em estatísticas. O Banco Mundial sugere que deveríamos fazer algo
a respeito dos news four biliion – referindo-se aos quatro
bilhões de seres humanos “que não têm acesso aos benefícios da globalização” –
uma hábil referência aos pobres. Temos também os bilhões que vivem com menos de
1,25 dólar por dia.
A FAO nos
mostra em detalhes onde estão localizadas as 800 milhões de pessoas famintas do
mundo. A Unicef conta aproximadamente 5 milhões de crianças que morrem
anualmente em razão do acesso insuficiente a comida e água limpa. Isso
significa quatro World Trade Centers por dia, mas elas morrem silenciosamente
em lugares pobres, e seus pais são desvalidos.
As coisas
estão melhorando, com certeza, mas o problema é que temos 80 milhões de pessoas
a mais todo ano – a população do Egito, aproximadamente – e este número está
crescendo. Um lembrete ajuda, pois ninguém entende de fato o que significa um
bilhão: quando meu pai nasceu, em 1900, éramos 1,5 bilhão; agora somos 7,2
bilhões. Não falo da história antiga, falo do meu pai.
E já
que não é da nossa experiência diária entender o que é um bilionário, vai aqui
uma nova imagem: se você investe um bilhão de dólares em algum fundo que paga
miseráveis 5% de juros ao ano, ganha 137.000 dólares por dia. Não há como
gastar isso, então você alimenta mais circuitos financeiros, tornando-se ainda
mais fabulosamente rico e alimentando mais operadores financeiros.
Investir em
produtos financeiros paga mais do que investir na produção de bens e serviços –
como fizeram os bons, velhos e úteis capitalistas – de modo que não tem como o
acesso ao dinheiro ficar estável, muito menos gotejar para baixo. O dinheiro é
naturalmente atraído para onde ele mais se multiplica, é parte da sua natureza,
e da natureza dos bancos.
Dinheiro nas
mãos da base da pirâmide gera consumo, investimento produtivo, produtos e
empregos. Dinheiro no topo gera fabulosos ricos degenerados que comprarão
clubes de futebol, antes de finalmente pensar na velhice e fundar uma ONG – por
via das dúvidas.
Um suborno
global - Muita
gente percebe que as regras do jogo são manipuladas. Os tempos são de fraude
global, quando pessoas fabulosamente ricas doam a políticos e promovem a
aprovação de leis para acomodar suas crescentes necessidades, fazendo da
especulação, da evasão fiscal e da instabilidade geral um processo estrutural e
legal.
Lester Brown
fez suas somatórias ambientais e escreveu Plano B [“Plan B”],
mostrando claramente que o atual Plano A está morto. Gus Speth, Gar Alperovitz,
Jeffrey Sachs e muitos outros estão trabalhando no Próximo
Sistema [“Next System”], mostrando, implicitamente, que nosso sistema
foi além de seus próprios limites.
Joseph
Stiglitz e um punhado de economistas lançaram Uma Agenda para a
Prosperidade Compartilhada, rejeitando “os velhos modelos econômicos”. De
acordo com sua visão, “igualdade e desempenho econômico constituem na realidade
forças complementares, e não opostas”.
A França criou
seu movimento de Alternativas Econômicas; temos a Fundação da Nova Economia no
Reino Unido; e estudantes da economia tradicional estão boicotando seus estudos
em Harvard e outras universidades de elite. Mehr licht! [Mais luz!]
E os pobres
estão claramente fartos desse jogo. Sobram muito poucos camponeses isolados e
ignorantes prontos a se satisfazer com sua parte, seja ela qual for. As pessoas
pobres de todo o mundo estão crescentemente conscientes de que poderiam ter uma
boa escola para seus filhos e um hospital decente onde pudessem nascer. E além
disso veem na TV como tudo pode funcionar: 97% das donas de casa brasileiras
têm aparelho de TV, mesmo quando não têm saneamento básico decente.
Como
podemos esperar ter paz em torno do lago que alguns chamam de Mediterrâneo, se
70% dos empregos são informais e o desemprego da juventude está acima de 40%? E
eles estão assistindo na TV o lazer e a prosperidade existentes logo ali,
cruzando o mar, em Nice?
A Europa
bombardeia-os com estilos de vida que estão fora do seu alcance econômico. Nada
disso faz sentido e, num planeta que encolhe, é explosivo. Estamos condenados a
viver juntos, o mundo é plano, os desafios estão colocados para todos nós, e a iniciativa
deve vir dos mais prósperos. E, felizmente, os pobres não são mais quem eram.
Cultura e
convivialidade - Sempre
tive uma visão muito mais ampla de cultura do que o tradicional “Ach! disse
Bach”. Penso que ela inclui desfrutar de alegria com os outros, enquanto se
constrói ou se escreve alguma coisa, ou simplesmente se brinca por aí.
Convivialidade. Recentemente passei algum tempo em Varsóvia. Nos fins de semana
de verão, os parques e praças ficavam cheios de gente e havia atividades
culturais para todo lado.
Ao ar livre,
com um monte de gente sentada no chão ou em simples cadeiras de plástico, uma
trupe de teatro fazia uma paródia do modo como tratamos os idosos. Pouco
dinheiro, muita diversão. Logo adiante, em outras partes do parque Lazienki,
vários grupos tocavam jazz ou música clássica, e as pessoas estavam sentadas na
grama ou assentos improvisados, as crianças brincando por perto.
No Brasil, com
Gilberto Gil no Ministério da Cultura, foi criada uma nova política, os Pontos
de Cultura. Isso significou que qualquer grupo de jovens que desejasse formar
uma banda poderia solicitar apoio, receber instrumentos musicais ou o que fosse
necessário, e organizar shows ou produzir online. Milhares de grupos surgiram –
estimular a criatividade requer não mais que um pequeno empurrão, parece que os
jovens trazem isso na própria pele.
A política foi
fortemente atacada pela indústria da música, sob o argumento de que estávamos
tirando o pão da boca de artistas profissionais. Eles não querem cultura,
querem indústria de entretenimento, e negócios. Por sorte, isso está vindo
abaixo. Ou pelo menos a vida cultural está florescendo novamente. Os negócios têm
uma capacidade impressionante para ser estraga-prazeres.
O
carnaval de 2016 em São Paulo foi incrível. Fechando o círculo, o carnaval de
rua e a criatividade improvisada estão de volta às ruas, depois de ter sido
domados e disciplinados, encarecidos pela comunicação magnata da Rede Globo.
As pessoas
saíram improvisando centenas de eventos pela cidade, era de novo um caos
popular, como nunca deixou de ser em Salvador, Recife e outras regiões mais
pobres do País. O entretenimento do carnaval está lá, é claro, e os turistas
pagam para sentar e assistir ao show rico e deslumbrante, mas a verdadeira
brincadeira está em outro lugar, onde o direito de todo mundo dançar e cantar
foi novamente conquistado.
Um caso de
consumo - Eu
costumava jogar futebol bastante bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar
no tradicional estádio do Pacaembu, em São Paulo. Momentos mágicos, memórias
para a vida inteira. Mas principalmente brincávamos entre nós, onde e quando
podíamos, com bolas improvisadas ou reais.
Isso não é
nostalgia dos velhos e bons tempos, mas um sentimento confuso de que quando o
esporte foi reduzido a ver grandes caras fazendo grandes coisas na TV, enquanto
a gente mastiga alguma coisa e bebe uma cerveja, não é o esporte – mas a
cultura no seu sentido mais amplo – que se transformou numa questão de produção
e consumo, não em alguma coisa que nós próprios criamos.
Em Toronto,
fiquei pasmo ao ver tanta gente brincando em tantos lugares, crianças e gente
idosa, porque espaços públicos ao ar livre podem ser encontrados em todo canto.
Aparentemente, por certo nos esportes, eles sobrevivem divertindo-se juntos.
Mas isso não é o mainstream, obviamente.
A indústria de
entretenimento penetrou em cada moradia do mundo, em todo computador, todo
telefone celular, sala de espera, ônibus. Somos um terminal, um nó na extensão
de uma espécie de estranho e gigante bate-papo global.
Esse bate-papo
global, com evidentes exceções, é financiado pela publicidade. A enorme
indústria de publicidade é por sua vez financiada por uma meia dúzia de
corporações gigantes cuja estratégia de sobrevivência e expansão é baseada na
transformação das pessoas em consumidores.
O sistema
funciona porque adotamos, docilmente, comportamentos consumistas obsessivos, ao
invés de fazer música, pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos,
jogar futebol ou nadar numa piscina com nossas crianças.
Um punhado de
otários consumistas - Que monte de idiotas consumistas nós somos, com
nossos apartamentos de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telefone
celular, assistindo o que outras pessoas fazem.
Quem precisa
de uma família? No Brasil o casamento dura 14 anos e está diminuindo, nossa
média é de 3,1 pessoas por moradia. A Europa está na frente de nós, 2,4 por
casa. Nos EUA apenas 25% das moradias têm um casal com crianças. O mesmo na
Suécia. A obesidade está prosperando, graças ao sofá, à geladeira, ao aparelho
de TV e às guloseimas.
Prosperam
também as cirurgias infantis de obesidade, um tributo ao consumismo. E você
pode
comprar um relógio de pulso que pode dizer quão rápido seu coração está
batendo depois de andar dois quarteirões. E uma mensagem já foi enviada ao seu
médico.
O que tudo
isso significa? Entendo cultura como a maneira pela qual organizamos nossas
vidas. Família, trabalho, esportes, música, dança, tudo o que torna minha vida
digna de ser vivida. Leio livros, e tiro um cochilo depois do almoço, como todo
ser humano deveria fazer. Todos os mamíferos dormem depois de comer, somos os
únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho.
Claro, há esse
terrível negócio do PIB. Todas as coisas prazerosas que mencionei não aumentam
o PIB – muito menos minha sesta na rede. Elas apenas melhoram nossa qualidade
de vida. E o PIB é tão importante que o Reino Unido incluiu estimativas sobre
prostituição e venda de drogas para aumentar as taxas de crescimento.
Considerando o tipo de vida que estamos construindo, eles talvez estejam
certos.
Necessitamos
de um choque de realidade. A desventura da terra não vai desaparecer, levantar
paredes e cercas não vai resolver nada, o desastre climático não vai ser
interrompido (a não ser se alterarmos nosso mix de tecnologia e energia), o
dinheiro não vai fluir aonde deveria (a não ser que o regulemos), as pessoas
não criarão uma força política forte o suficiente para apoiar as mudanças
necessárias (a não ser que estejam efetivamente informadas sobre nossos
desafios estruturais).
Enquanto isso,
as Olimpíadas e MSN (Messi, Suarez, Neymar para os analfabetos) nos mantêm
ocupados em nossos sofás. Como ficará, com toda a franqueza, o autor destas
linhas. Sursum corda.
Leia mais sobre temas
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