Morte de uma baleia
Clarice Lispector
Em
minutos espalhara-se a notícia: uma baleia no Leme e outra no Leblon haviam
surgido na arrebentação de onde tinham tentado sair sem no entanto poder
voltar. Eram descomunais apesar de apenas filhotes. Todos foram ver. Eu não
fui: corria o boato de que ela agonizava já há oito horas e que até atirar nela
haviam atirado mas ela continuava agonizando e sem morrer.
Senti um
horror diante do que contavam e que talvez não fossem estritamente os fatos
reais, mas a lenda já estava formada em torno do extraordinário que enfim,
enfim! Acontecia, pois por pura sede de vida melhor estamos sempre à espera do
extraordinário que talvez nos salve de uma vida contida. Se fosse um homem que
estivesse agonizando na praia durante oito horas nós o santificaríamos, tanto
precisamos de crer no que é impossível.
Não, não fui
vê-la: detesto a morte. Deus, o que nos prometeis em troca de morrer? Pois o
céu e o inferno nós já os conhecemos – cada um de nós em segredo quase de sonho
já viveu um pouco do próprio apocalipse. E a própria morte.
Fora das vezes
em que quase morri para sempre, quantas vezes num silêncio humano – que é o
mais grave de todos do reino animal –, quantas vezes num silêncio humano minha
alma agonizando esperava por uma morte que não vinha. E como escárnio, por ser
o contrário do martírio em que minha alma sangrava, era quando o corpo mais
florescia. Como se meu corpo precisasse dar ao mundo uma prova contrária de
minha morte interna para esta ser mais secreta ainda. Morri de muitas mortes e
mantê-las-ei em segredo até que a morte do corpo venha, e alguém, adivinhando,
diga: esta, esta viveu.
Porque aquele
que mais experimenta o martírio é dele que se poderá dizer: este, sim, este
viveu.
O mais
estranho é que todas as vezes em que era só o corpo que estava à morte, a alma
o desconhecia: da última vez em que meu corpo quase morreu, ignorando o que
sucedia, tinha uma espécie de rara alegria como se ela estivesse enfim liberta
enquanto o corpo doía como o Inferno. Uma das vezes, só depois que passou é que
me disseram: eu havia estado três dias entre vida e morte, e nada garantiam os
médicos, senão que tudo tentariam. E eu tão inocente do que estava acontecendo
que estranhava não permitirem visitas. Mas eu quero visitas, dizia, elas me
distraem da dor terrível. E todos os que não obedeceram à placa “Silêncio”,
todos foram recebidos por mim, gemendo de dor, como numa festa: eu tinha-me
tornado falante e minha voz era clara: minha alma florescia como um áspero
cactos. Até que o médico, realmente muito zangado e num tom definitivo,
disse-me: mais uma só visita e lhe darei alta no estado mesmo em que você está.
“O estado em que eu estava” eu o desconhecia, nunca nesses dias notei que
estava no limiar da morte. Parece-me que eu vagamente sentia que, enquanto
sofresse fisicamente de um modo tão insuportável, isso seria a prova de estar
vivendo ao máximo.
Lembro-me
agora de uma vez que ao olhar um pôr do sol interminável e escarlate também eu
agonizei com ele lentamente e morri, e a noite veio para mim cobrindo-me de
mistério, de insônia clarividente e, finalmente por cansaço, sucumbindo num
sono que completava a minha morte. E quando acordei, surpreendi-me docemente.
Nos primeiros ínfimos instantes de acordada pensei: então quando se está morta
se conserva a consciência? Até que o corpo habituado a mover-se automaticamente
me fez fazer um gesto muito meu: o de passar a mão pelos cabelos. Então num
susto percebi que meu corpo e minha alma tinham sobrevivido. Tudo isto – a
certeza de estar morta e a descoberta de que eu estava viva – tudo isto não
durou, creio, mais que dois ínfimos segundos ou talvez menos ainda. Mas que de
hoje em diante todos saibam através de mim que não estou mentindo: em menos de
dois segundos podem-se viver uma vida e uma morte e uma vida de novo. Esses
dois ínfimos segundos como forma de contar toscamente o tempo devem ser a
diferença entre o ser humano e o animal: assim como Deus talvez conte o tempo
em frações de século dos séculos: cada século um instante. Quem sabe se Deus
conta a nossa vida em termos de dois segundos: um para nascer e outro para
morrer. E o intervalo, meu Deus, talvez seja a maior criação do Homem: a vida,
uma vida. Lembro-me de um amigo que há poucos dias citou o que um dos apóstolos
disse de nós: vós sois deuses.
Sim, juro que
somos deuses. Porque eu também já morri de alegria muitas vezes na minha vida.
E quando passava essa espécie de gloriosa e suave morte, eu me surpreendia de
que o mundo continuasse ao meu redor, de que houvesse uma disciplina para cada
coisa, e de que eu mesma, a começar por mim, tinha o meu nome e já entrara na
rotina: pensara que o tempo tinha parado e os homens subitamente se tinham
imobilizado no meio do gesto que estivessem executando – enquanto eu vivera a
morte por alegria.
Não fui ver a
baleia que estava a bem dizer à porta de minha casa a morrer. Morte, eu te
odeio.
Enquanto isso
as notícias misturadas com lendas corriam pela cidade do Leme. Uns diziam que a
baleia do Leblon ainda não morrera mas que sua carne retalhada em vida era
vendida por quilos pois carne de baleia era ótimo de se comer, e era barato,
era isso que corria pela cidade do Leme. E eu pensei: maldito seja aquele que a
comerá por curiosidade, só perdoarei quem tem fome, aquela fome antiga dos
pobres.
Outros, no
limiar do horror, contavam que também a baleia do Leme, embora ainda viva e
arfante, tinha seus quilos cortados para serem vendidos. Como acreditar que não
se espera nem a morte para um ser comer outro ser? Não quero acreditar que
alguém desrespeite tanto a vida e a morte, nossa criação humana, e que coma
vorazmente, só por ser uma iguaria, aquilo que ainda agoniza, só porque é mais
barato, só porque a fome humana é grande, só porque na verdade somos tão
ferozes como um animal feroz, só porque queremos comer daquela montanha de
inocência que é uma baleia, assim como comemos a inocência cantante de um
pássaro. Eu ia dizer agora com horror: a viver desse modo, prefiro a morte.
E exatamente
não é verdade. Sou uma feroz entre os ferozes seres humanos – nós, os macacos
de nós mesmos, nós, os macacos que idealizaram tornarem-se homens, e esta é
também a nossa grandeza. Nunca atingiremos em nós o ser humano: a busca e o
esforço serão permanentes. E quem atinge o quase impossível estágio de Ser
Humano, é justo que seja santificado.
Porque
desistir de nossa animalidade é um sacrifício.
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