Era um super-homem?
Cícero Belmar
Conheci um
homem que pode virar santo. É um processo que demora anos, mas posso dizer,
estive algumas vezes com uma pessoa honesta, humilde e caridosa. Se isso faz do
humano um santo, ele o era.
Na foto, estou ao seu lado:
o arcebispo que vivia uma cruzada ideológica, social e religiosa, em nome dos
mais pobres, encarou poderosos e desafiou até a Igreja. Aparentemente frágil,
mas um gigante.
Foi uma foto de fins da
década de 1980 ou início da de 1990. Dom Hélder Câmara é o dom da paz, que hoje
o Vaticano pode santificar. Eu, um mero repórter iniciante e idealista, cobria
o setor de Direitos Humanos.
Na fotografia, caminhamos
por uma estrada de barro avermelhado, num engenho da Zona da Mata de
Pernambuco. Terras que ele ajudou a fazer a reforma agrária, para garantir vida
digna aos sem terra da região.
Faço perguntas, enquanto
seguimos; anoto as respostas. À nossa frente, vão os trabalhadores rurais.
Mulheres com crianças no braço, homens com cartazes exigindo seus direitos. O
fotógrafo clicou esse momento.
A foto é uma metáfora: as
pessoas seguem como ovelhas e o bom pastor, logo atrás, como a conduzi-las. O
então arcebispo de Olinda e Recife veste uma batina surrada, creme. Eu, barba
imensa, magérrimo, camisa no estilo bata, bolsa à tira colo, óculos escuros,
tipo alternativo.
Muitos anos se passaram,
não lembrava mais desse momento que a foto salvou. Na semana passada, a
jornalista Gisela Didier, contemporânea, me enviou pelo WhatsApp: “Conheci este
jovem repórter”. Para minha surpresa, é uma das que ilustram o calendário que o
Instituto Dom Hélder Câmara (Idec) lançou este ano, para ajudar nas despesas da
instituição.
Não vou mentir. Por mais
que estejamos antenados com os processos políticos e sociais de que
participamos, nem sempre temos a agudeza de compreender que vivemos a História
do nosso tempo. De que, naquele instante, somos também testemunhas. Eu sabia da
importância daquele homem, todo jornalista sabia. Do privilégio de estar ao seu
lado. Também entendia o significado daquele fato. Mas, coberturas jornalísticas
importantes são cotidianas para um repórter.
Dom Hélder tinha uma
simplicidade desconcertante. Simplicidade que, para mim, é o retrato das
pessoas raras. Se um repórter ligasse para sua casa, adivinha quem
atenderia o telefone? Se a gente fosse até lá, arriscar uma entrevista, ele
mesmo viria abrir a porta. Mandava entrar. Era assim.
Relato essas coisas só para
constatar que lidamos muito mal com os nossos processos históricos. Somos
especialistas em banalizar a vida. Quantos acontecimentos importantes apagamos?
Salve o compositor
Gonzaguinha: “Eu preciso é ter consciência do que eu represento neste exato
momento”. Sem essa consciência, não mandaremos recados para o futuro, não
deixaremos vestígios, nem seremos capazes de reconhecer os santos com quem
convivemos.
*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos,
romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens.
Membro da Academia Pernambucana de Letras.
.
Veja: uma dica de leitura para quem gosta de cinema https://bit.ly/3qlLWRr
Nenhum comentário:
Postar um comentário