A epidemia fugiu do controle, e só podemos contar com nós mesmos
Brasileiros decretaram o fim do
coronavírus em novembro sob a justificativa de que ninguém aguentava mais ficar
em casa
Drauzio Varella, Folha de S. Paulo
Os brasileiros
decretaram o fim da epidemia, em novembro do ano passado. Os bares lotaram,
multidões nas praias, famílias reunidas no Natal e no Ano-Novo, festas
clandestinas à luz da noite espalhadas pelas cidades, Carnaval.
A
justificativa para esse comportamento estúpido era a de que ninguém aguentava
mais ficar em casa.
Em janeiro,
chegaram as férias. Os hotéis dos recantos turísticos voltaram a receber
hóspedes, as ruas das metrópoles se encheram de gente aglomerada sem máscara e
de ônibus e trens superlotados pelos que não tinham alternativa senão
trabalhar.
Alheio a tudo,
o presidente da
República passeava de jet ski, cumprimentava admiradores e posava
sem máscara para selfies, o Ministério da Saúde distribuía o kit Covid,
deputados e senadores tentavam aprovar uma emenda à
Constituição para livrá-los da prisão em flagrante e faltava
coragem à maioria de governadores e prefeitos para decretar medidas rígidas de
afastamento social.
Os médicos, os
sanitaristas e os epidemiologistas que alertavam para as dimensões da tragédia
em gestação eram considerados alarmistas e defensores de interesses políticos
escusos.
Deu no que
deu: 300 mil mortos,
hospitais com UTIs sem
leitos para oferecer aos doentes graves, milhares de pacientes morrendo à espera
de uma vaga.
O que
acontecerá nas próximas semanas? Chegaremos a 400 mil mortes?
Os hospitais
brasileiros estão em colapso. Os infectados foram tantos que abrir mais leitos
em UTI é enxugar gelo. Os gestores investem em equipamentos e profissionais
para abrir vagas que serão ocupadas em menos de 24 horas.
O número de
óbitos em casa e nas unidades básicas de saúde despreparadas para o atendimento
é enorme. Os estoques de medicamentos
para a sedação dos doentes entubados chegam ao fim. Começam a
faltar até corticosteroides e anticoagulantes, medicações de baixo custo que o
Ministério da Saúde não se preocupou em adquirir.
As vacinas
perderam o "timing" para conter a escalada atual. Ainda que fosse
possível vacinar todos os brasileiros neste fim de semana, as mortes
continuariam a se suceder da mesma forma, pelo menos durante o mês de abril e
uma parte de maio.
Vejam a
situação de São Paulo, o estado que conta com o sistema de saúde mais
organizado do país. No pico da primeira onda, dispúnhamos de cerca de 9.000
leitos de UTI, agora temos 14 mil, lotados. No dia 17 de março havia pelo menos
1.400 pessoas à espera de internação em UTI.
O maior
complexo de saúde do Brasil, o Hospital das Clínicas, recebia, em fevereiro, a
média de 56 pedidos de internação; nos últimos sete dias foram 364, dos quais
110 estavam em estado grave por outras doenças e 254 por Covid.
Se esse é o
panorama no estado mais rico, caríssima leitora, dá para imaginar o caos no
resto do país?
Parece que
nossos dirigentes despertaram para as dimensões da tragédia que se abateu sobre
nós. Empresários e
economistas enviaram um recado duro ao presidente, pena que
tardio. O ministro da Economia reconheceu que sem vacinação a
economia não se recupera. Só agora percebeu? Por que não disse nada
em julho, quando nos foram oferecidos os 70 milhões de
doses da vacina da Pfizer que
o Ministério da Saúde rejeitou? Receio de magoar o chefe?
O presidente
da Câmara declarou que "tudo tem limite" e que apertava "o
botão amarelo". Amarelo, excelência? Enquanto 300 mil famílias
perdiam entes queridos, o sinal estava verde?
Deprimente ver
os malabarismos circenses do novo ministro da Saúde, ao justificar que ficava a
critério da liberdade milenar do médico prescrever o tratamento
precoce com drogas inúteis. Como assim, ministro? Enquanto a
medicina foi praticada como o senhor defende, os colegas que me antecederam
receitavam sangrias e sanguessugas.
Finalmente,
sob pressão, o presidente convocou os três Poderes para um convescote político,
com o pretexto de criar um
comitê para gerir a crise sanitária. Incrível, não? Imaginar
que uma equipe comandada por ele será capaz de nos tirar dessa situação é
acreditar que mulher casada com padre vira mula sem cabeça.
A consequência
mais nefasta de tantos desmandos, caro leitor, foi a de que a epidemia fugiu do
controle do sistema de saúde. Daqui em diante, só podemos contar com nós
mesmos.
Veja: No Brasil de hoje
tudo é instável e imprevisível
https://bit.ly/3eLGZj1
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