‘O perverso não aceita
restrições ao seu gozo’
Em
entrevista, a psicanalista se diz pessimista em relação às chances de
convencê-los da gravidade da pandemia
Rodrigo
Martins, CartaCapital
“A denegação é o mecanismo psíquico que caracteriza as perversões. O
sujeito sabe o que a ética lhe impõe, mas age como se tivesse direitos
excepcionais”, afirma a psicanalista Maria Rita Kehl, ao analisar o
comportamento dos brasileiros que se recusam a seguir as recomendações das
autoridades sanitárias.
Na entrevista a seguir, a especialista fala sobre a indiferença dos
negacionistas e mostra-se pessimista em relação à possibilidade de convencê-los
da gravidade da pandemia.
“Eles
não ignoram o perigo, mas se consideram melhores e mais fortes do que os
outros, ‘acima’ do comum dos mortais.”
Confira.
CartaCapital: O Brasil vive o pior momento
na pandemia. Ainda assim, muitos parecem não estar preocupados, aglomeram-se em
bares e festas. O que explica esse comportamento de risco?
Maria Rita Kehl: Esse comportamento assenta-se sobre um mecanismo que a psicanálise chama de denegação. A pandemia restringe a nossa vida, o vírus nos ameaça de morte. Isso nos angustia a todos. Mas há um grande número de pessoas, lideradas por aquele que deveria proteger a população, que prefere acreditar que não corre perigo. Acham-se mais fortes, mais poderosos e, claro, muito mais ousados do que nós. Eles sabem que correm perigo e fingem para si mesmos que com eles nada acontecerá. Sabem que, mesmo se não adoecerem, eles podem contaminar pessoas mais frágeis, mas são perversamente indiferentes. A denegação é o mecanismo psíquico que caracteriza as perversões. O sujeito sabe o que a ética lhe impõe, mas age como se tivesse direitos excepcionais. O perverso não aceita restrições ao seu gozo. Sabe que é crime, por exemplo, molestar sexualmente uma criança. “Mas mesmo assim… eu faço. Eu posso.” Essa atitude subjetiva, para Lacan, define o perverso.
CC: As festas clandestinas não atraem
somente os jovens. No último fim de semana, a polícia interrompeu um baile com
190 idosos em São Paulo. Por que nem mesmo integrantes de grupos de risco
respeitam as recomendações das autoridades sanitárias?
MRK: Difícil responder.
Talvez haja nesse grupo um componente autodestrutivo: “Estamos velhos, vamos
morrer antes dos outros de qualquer maneira, então, que se dane o risco”. É
autodestrutivo, mas também egoísta, porque eles sabem que podem contaminar
outras pessoas. Ainda não conseguimos avaliar com precisão os efeitos do
bolsonarismo. Não se trata apenas de uma adesão a valores de extrema-direita,
ao autoritarismo, à indiferença em relação às desigualdades. Parece-me que o
discurso que norteia as ações deste governo é descaradamente destrutivo. Existe
um “dane-se!” – para não usar outra expressão mais, digamos, enfática – em
circulação na sociedade brasileira. Consciente ou inconscientemente, esse voto
mortífero nos atinge a todos, e fascina os fracos que se pretendem valentões.
CC: Além das aglomerações, há muitos casos de gente que se recusa a usar a máscara ou se vacinar por razões ideológicas, encampam o discurso anticientífico de Bolsonaro. O que leva tantos a abrir mão da razão e abraçar um líder político de forma tão acrítica?
MRK: Parte dos que
elegeram este presidente estava fascinada pela forma como, antes da campanha de
2018, ele incitava a violência e, com ares de grande herói, dizia e promovia
coisas terríveis. Chegou a elogiar publicamente um dos piores torturadores da ditadura
e disse a uma deputada que só não a estupraria porque ela era “muito feia”. A
destrutividade tem um aspecto fascinante. Por isso, o laço social depende do
respeito a certos tabus que nos protegem. A inviolabilidade do corpo do outro,
o respeito à fragilidade da vida, à dignidade de cada semelhante nosso, do mais
humilde ao mais poderoso. Tudo isso é violado pelos discursos que circulam de
modo frenético. Os jornais trazem, diariamente, notícias de pequenas e grandes
maldades cometidas, aparentemente, pelo puro prazer de cometê-las. Espalhar a
Covid é apenas mais uma.
CC: O que pode ser feito para convencê-los sobre a gravidade da crise e a necessidade de manter as medidas preventivas enquanto a população não for vacinada?
MRK: Estou bastante pessimista em relação ao “convencimento” dessa
parcela negacionista. Eles não ignoram o perigo, mas se consideram melhores e
mais fortes do que os outros, “acima” do comum dos mortais. Não dá para
convencê-los. Mas é imprescindível puni-los de forma mais eficiente. Isso é
tarefa dos prefeitos e, principalmente, dos governadores, que detêm o poder
sobre as polícias. É preciso, sem a violência que caracteriza as PMs, dissolver
multidões, prender agitadores violentos e, quem sabe, destituir o mandante-mor
da nação, embora essa possibilidade pareça cada vez mais distante com o
Congresso que temos. Ele é o primeiro a apostar fortemente no fascínio que
esses gestos de onipotência, desrespeito e indiferença exercem sobre os que se
consideram “acima” da lei. E também, veja só, sobre os mais fracos, mais
vulneráveis, que respondem às convocações infantis de valentia vindas do
presidente, como se estas representassem uma grande oportunidade de provar a
sua ousadia, o seu valor.
*
Veja: Você também pode entender de tática política https://bit.ly/3biUKDH
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