Força na peruca
Cícero Belmar
No trajeto de
minha casa até o mercado gasto uns dez minutos e vejo, no primeiro sinal de
trânsito, um homem que vai de carro em carro, pedindo uma ajuda. Na calçada ao
lado do semáforo, está sua família, debaixo da marquise. A mulher e duas
crianças pequenas. Ela estende a mão para mim, me dê um trocadinho, pelo amor
de Deus.
Dali, prossigo. Na esquina,
onde preciso dobrar, uma outra mulher, negra, dorme na calçada. Enrolada em
cobertor sujo e velho, está alheia às buzinas dos carros. Se eu continuasse para
além do mercado, certamente iria encontrar mais pedintes, e sem teto, nas ruas.
E é justamente o que eu digo a Carlos Lima, por telefone, quando chego, mais
tarde, de volta para casa: “A coisa está feia”.
Fotógrafo dos bons e meu
amigo, Carlos aproveita para me contar histórias semelhantes. Ele me relata que
precisou resolver umas pendências, no centro do Recife, e comenta que viu
“muita gente em situação de rua, como nunca mais tinha visto na cidade”.
No momento em que mais de
400 mil pessoas morreram por conta da covid-19, no País, também a fome chega a
outras milhares de famílias. Incontáveis brasileiros estão na miséria. Muita
gente ficou sem emprego, quem era pobre ficou ainda mais.
Digo a palavra incontáveis
porque o Governo federal cortou verbas do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE). A Justiça mandou liberar o dinheiro, mesmo assim a
instituição continua de mãos atadas para fazer o censo demográfico.
Na conversa com Carlos,
pergunto se ele, quando esteve no centro da cidade, pensou em registrar as
cenas que viu. Jornalista tem defeito de fábrica, vê a vida como possibilidade
de notícia. Ele responde que sim, mas que não havia levado a máquina
fotográfica.
O aumento do número de
pessoas vivendo nas ruas reforça nosso sentimento de angústia, de ansiedade, de
incerteza, que a pandemia nos provoca. Estamos todos doentes emocionalmente.
Comparo a pandemia da
covid-19 com aquelas bonecas russas talhadas em madeira, as matrioska, que têm
umas dentro das outras. A pandemia abriga epidemias diversas que vêm à tona
enquanto os números de contaminados e mortos se avolumam. Dentro da pandemia
está a fome; e mais no interior ainda, a ansiedade. A depressão. Uma doença
dentro da outra.
Convenhamos, está puxado.
Só nos resta confiar em Deus, na Ciência, e em nós mesmos. Nessa pandemia,
particularmente, tenho descoberto a força do que é subjetivo. Sentimentos como
a esperança, a fé, o humor, ajudam a enfrentar o presente. Que, diga-se de
passagem, quando virar passado, será igualmente subjetivo.
Fé é espada, gume cortante,
que faz acreditar sem provas. A saída é respirar fundo, calma e humildemente,
para continuar na batalha. A esperança, por sua vez, é um apoio que a gente
coloca na frente para dar mais um passo nesse campo minado.
Já o humor, embora ele não
impeça a seriedade nem os nossos deveres para com as outras pessoas, é o que
ainda nos faz ver o horizonte, nos faz rir. Garante um pouco de leveza, apesar
dos pesares. Afinal, a tensão pela tensão só complica, não ajuda. O humor, sim.
Continuar vivo é desafio e arte. Então, força na peruca!
*Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos,
romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens.
Membro da Academia Pernambucana de Letras.
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Veja: Ampliar a frente democrática para evitar o pior https://youtu.be/VKvI9Ht196U
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