Deter o fascismo já
MARCIO SOTELO FELIPPE (advogado,
ex-procurador-geral do Estado de São Paulo, mestre em Filosofia e Teoria Geral
do Direito pela USP)
A classe média sente-se mal. Envenena-se pelo ressentimento. Há uma crise econômica. Uniformizada, ela toma as ruas. Um arranjo parlamentar põe no poder um governo de direita. A classe média não ganha nada, mas o grande capital é logo recompensado. Trabalhadores perdem direitos e salários. Politicas de proteção a idosos são revogadas. Cortes orçamentários afetam a saúde. Serviços públicos privatizados. Organizações criminosas agem livremente com apoio ou omissão das autoridades e mantém um vínculo com o Executivo.
Não, esse texto não é sobre o Brasil
após 2013. Mas pode ser. O que ele diz se reproduz em tempos e lugares
distintos. É uma apertadíssima síntese do Relatório apresentado por Clara
Zetkin em 1923 ao Pleno Ampliado do Comitê Executivo do Komintern e versa sobre
a Itália no período 1919 – 1923, um ano depois da Marcha sobre Roma que
conduziu Mussolini ao poder. Em 1926, as instituições liberais foram
definitivamente liquidadas e teve-se o primeiro regime fascista da História. Antes
de 1926, o fascismo conviveu com elas.
Não é uma
coincidência histórica que o fascismo possa ser superposto
em sua gênese e
coincidir com o Brasil depois de 2013.
As categorias fundamentais são as
mesmas porque decorrem da estrutura da sociedade burguesa: o grande capital, as
camadas intermediárias (classe média ou pequena burguesia) e os trabalhadores.
O momento em que há uma crise de acumulação ou de dominação. O irracional da
classe média que, apesar de em grande parte prejudicada pelo grande capital,
põe-se no plano ideológico ao lado das classes dominantes, na qual se
projeta. Quer mudanças sem mudar o sistema e, por isso, visceralmente
anticomunista. Quando sai às ruas seu alvo são os trabalhadores, suas
organizações políticas e movimentos. O seu mal-estar ou ressentimento
transforma-se em ódio de classe contra os trabalhadores. Pulsões primitivas,
pré-civilizatórias, passam a movê-las.
A permissividade faz-se anomia moral e
tudo é possível. Na Itália em 1920 – 1921, no chamado biennio nero, reação ao biennio
rosso de 1919-1920 de intensa agitação operária e clima insurrecional, havia
“cerca de 15 milhões de pessoas à mercê de bandos armados que estupravam,
espancavam, aterrorizavam e matavam”, escreve Luciano Belochi em La rivoluzione
mancata – Italia 1919-1921. Nos primeiros sete meses de 1921, Gramsci
computou 1.500 assassinatos, 40 mil aleijados, espancados e feridos, dois
mil exilados, vinte jornais destruídos, reporta Belochi, tudo com a omissão ou
conivência do Estado.
Em outras fontes, um balanço da
violência fascista no primeiro semestre de 1921 aponta 726 destruições, ataques
a 217 jornais e tipografias, a 259 casas do povo, a 119 conselhos de fábrica, a
107 cooperativas, a 483 ligas de camponeses, a 48 sociedades de mútuo socorro,
a 141 sedes do Partido Socialista Italiano, a 100 círculos de cultura, a 610
bibliotecas, a 28 sindicatos operários e a 653 círculos operários recreativos.
Os protagonistas eram facilmente identificáveis: classe média e
desclassificados de toda sorte, lúmpens recrutados dentre os trabalhadores,
tudo com apoio e financiamento do grande capital e do latifúndio agrário.
Naquele momento de gênese do fascismo,
Gramsci e Clara Zetkin criticavam concepções que o viam como um fenômeno
passageiro, contingência política controlável ou fadada a desaparecer.
Entenderam que suas raízes eram próprias da estrutura da sociedade burguesa, do
conflito de classes, o que depois Horkheimer dirá de outro modo: quem não quer
falar de capitalismo deve calar-se sobre o fascismo.
A tragédia do fascismo italiano, e depois o horror
absoluto do fascismo alemão, não foram detidos quando era possível. Sabemos o
que custou.
Vidas destroçadas, dor, sofrimento e
mutilação de uma parte da sociedade. Foi o terror feito norma social, a
ausência de limites morais que pouco a pouco se instalou na consciência de uma
parte da sociedade e fez com que outra parte se perguntasse depois como
aquilo foi possível, sem se dar conta de que foi possível pela sua própria
complacência, irracionalidade e cegueira.
Estamos hoje no Brasil exatamente no
ponto em que estavam Itália nos anos 1920 e Alemanha nos anos 1930: o momento
de deter o fascismo, com o agravante de que conhecemos a História e o horror
absoluto se mostra precocemente. Confirmaremos mais uma vez a frase de Gramsci
– a História ensina, mas não tem discípulos?
Bolsonaro já fez do país um imenso
gueto de Varsóvia, matando ao governar a favor da doença, matando pela fome e
pela miséria. A responsabilidade por uma morte que se tem, por dever de ofício
ou de Estado, a obrigação de evitar, é homicídio. Aos milhares, torna-se crime
contra a humanidade. E continua a fazê-lo dia após dia sob o olhar complacente,
omisso ou ingênuo das instituições – que podem estar prestes a ser destroçadas
– e de forças políticas que pensam que 2022 fará com que tudo se resolva sem
maiores problemas. Como na fórmula clássica do fascismo, Bolsonaro tem o apoio
do grande capital. Seus porta-vozes, a grande imprensa, não deixam dúvidas: a
primeira grande manifestação popular, o 29M, foi solenemente ignorada por ela.
Esse é sempre o sentido do fascismo: serve ao grande capital, que relega ao
abandono seus antigos representantes.
Todos os movimentos para fazer de 2022
uma convulsão política e uma tragédia social estão sendo anunciados. Não são
bravatas. São um roteiro. São planos. Anunciá-los faz parte da mecânica do
fascismo, que precisa de uma base de massa mobilizada. O fascismo não age
sub-repticiamente, não dissimula, porque precisa capturar o irracional da
massa.
A invasão do Capitólio quis ser a
Marcha sobre Roma e quis ser o incêndio do Reichstag. A invasão do Capitólio
está sendo preparada aqui com a denúncia do voto eletrônico, o mote para que a
massa fascista dê nas ruas suporte para o golpe. Há um projeto no Congresso
retirando dos governadores o controle das Polícias Militares. A Polícia Militar
de Pernambuco atuou no sábado, 29 de maio, sob o comando de Bolsonaro, assim
como a Polícia do Rio de Janeiro, no massacre de Jacarezinho. As milícias são
fetos em gestação da SS alemã e das squadre d’azione italianas.
Não se enfrenta a barbárie do fascismo
com uma inerte e ingênua fé no bom senso e nos princípios civilizatórios.
Precisaremos de muitos 29 de maios para sermos verdadeiros discípulos da
História. É nas ruas que se derrota o fascismo.
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