06 novembro 2021

Decadência

Última chance

Se houver, claro, a pretensão de sermos ao menos um arremedo de nação
Fernando de Barros e Silva, revista PIAUÍ


Bolsonaro não é um genocida. Segundo o relatório da CPI da Pandemia, o presidente da República cometeu apenas crime contra a humanidade. Cometeu também o que o Código Penal chama de epidemia com resultado de morte, quando alguém causa ou propaga a doença. Além disso, Bolsonaro infringiu medidas sanitárias preventivas, empregou verba pública de maneira irregular, fez incitação ao crime, falsificou documentos particulares, incorreu em charlatanismo e prevaricou. Por fim, a CPI concluiu que Jair Messias Bolsonaro cometeu crime de responsabilidade. 

São delitos para várias encarnações. A CPI, no entanto, não tem poder nem para indiciar os supostos criminosos – oitenta no total –; ela apenas encaminha suas recomendações aos órgãos competentes. No caso do presidente da República, cabe ao procurador-geral da República examinar as denúncias para lhes dar um destino. O país já sabe o que pode esperar de Augusto Aras. Ele tem certa tara por gavetas. Gosto compartilhado por Arthur Lira (PP-AL), o presidente da Câmara, a quem caberia dar início ao processo de cassação do mandato por crime de responsabilidade.

Foi provavelmente por conhecer a alma de Lira & Aras que o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), ao ser indagado por jornalistas sobre a reação do pai ao relatório da CPI, soltou uma gargalhada forçada diante dos microfones, simulando como seria o gesto obsceno do presidente. Isso ocorreu no dia 20 do mês passado, uma quarta-feira. 

Dois dias depois, na sexta-feira, Bolsonaro de fato gargalhou. E o fez de forma espontânea, não por causa do relatório de Renan Calheiros (MDB-AL), mas à custa de Paulo Guedes, o seu vira-lata de estimação. A cena ocorreu no Ministério da Economia, quando o borra-botas, antigo Posto Ipiranga, tentava justificar sua permanência no cargo depois do anúncio da implosão do teto de gastos. Bolsonaro acompanhava o exercício de vassalagem de Guedes de cara fechada, entre entediado e impaciente, até que o ministro, o tempo todo com as mãos trêmulas e a expressão assustada, anunciou o novo secretário do Tesouro e Orçamento, em substituição ao demissionário Bruno Funchal. Primeiro Guedes chamou Esteves Colnago de André Esteves. Depois, tentando se corrigir, misturou os dois, inventando um tal André Esteves Colnago. Quando, enfim, acertou o nome do assessor, Bolsonaro já havia se divertido o suficiente. No final da explanação, com os dois já em pé, o chefe ordenou ao capataz ainda atônito: “Aperta a mão aí.” Um manda e o outro obedece, como diria Eduardo Pazuello. Guedes abanou o rabo.

Revelados ao país na mesma semana, o abandono do teto de gastos e as conclusões da CPI foram computados pela imensa maioria dos comentaristas políticos como derrotas de Bolsonaro. Faz sentido. O presidente brasileiro circulou pela imprensa internacional como um negacionista criminoso, um psicopata, um pária execrável. Como se não bastasse, a crise do teto selou a quebra de confiança entre o governo e os agentes do mercado. A percepção de que nada funciona no Brasil, de que não somos um país confiável, ficou reforçada. É tudo verdade. Mas, ainda assim, Bolsonaro talvez tenha motivos para dar risada.

Primeiro, porque a CPI, apesar de cumprir papel relevante no curso da tragédia sanitária, não deixa de ser também um documento da impotência da democracia diante das atrocidades do presidente. Os crimes se acumularam, foram reiterados de forma abusiva, estão todos escancarados, são intoleráveis, mas é praticamente certo que nada lhe acontecerá. A punição política ficou para as calendas, não há o menor sinal de impeachment no horizonte. Como se costuma dizer nos vestiários de futebol, Aqui é Centrão, porra! Um dos slogans da campanha de 2018 já avisava aos incautos: É melhor Jair se acostumando

Em segundo lugar, ninguém ignora que, sem teto, a casa da economia brasileira ficou mais exposta a tempestades – a piora das expectativas para 2022 é uma unanimidade, o que varia um pouco entre os entendidos é a intensidade do desastre contratado. Ruim ou péssimo para o país, não necessariamente para o projeto político de Bolsonaro. Ao anunciar o novo Auxílio Brasil de 400 reais durante doze meses para 17 milhões de famílias, o presidente avança aos trancos e barrancos sobre o eleitorado de Lula. Mais de 40% dos que serão beneficiados pelo programa estão no Nordeste. O impacto político dessa transferência em ano eleitoral depende de variáveis e circunstâncias que desconhecemos, mas dificilmente será nulo ou desprezível. Não é à toa que o passe de Bolsonaro esteja sendo disputado no grito pelo PP de Ciro Nogueira e pelo PL de Valdemar Costa Neto, tutti buona gente del “Centrone”.

Apouco menos de um ano para as eleições, num ambiente turvado como o atual, há argumentos na praça para qualquer prognóstico. Um deles, em alta na bolsa de apostas das redações de jornais e nas salas envidraçadas da Faria Lima, diz que Bolsonaro vai derreter com a economia e viabilizar assim a emergência de um nome alternativo para enfrentar e derrotar Lula no segundo turno. Ou seja, chegou a hora dessa gente bronzeada da terceira via mostrar seu valor. O jornal O Globo teve até a iniciativa de promover um debate entre os candidatos a candidato a presidente pelo PSDB, o que foi logo batizado nas redes de Projeto Tucano-Esperança.

No mundo das coisas terrenas, o que está se consolidando por enquanto é a fragmentação irreversível do chamado campo democrático. A essa altura é preciso perguntar se essa noção – o campo democrático – já não se tornou uma espécie de ilusão retórica que não descreve mais a realidade. As forças que formaram o continente político nas últimas três décadas agem agora como ilhas que estão em guerra entre si, como se não houvesse (e na prática eles nos dizem que não há) um inimigo comum, um adversário da democracia a ser combatido. Jeder für sich und Gott gegen alle – cada um por si e Deus contra todos. O título original do filme de Werner Herzog (traduzido no Brasil como O Enigma de Kaspar Hauser) serve de epígrafe ao Brasil atual.

Jair Bolsonaro está muito longe de ser um morto-vivo. No pior momento de seu mandato, tem a aprovação de 20% a 25% da população e intenção de voto muito semelhante (a coincidência entre os índices indica o enraizamento de seu eleitorado). A extrema direita se organizou no país e isso não foi um acidente histórico. Uma sociedade tão violenta, tão fraturada, com diferenças de renda e condições de vida tão abissais era e segue sendo um prato cheio para o advento deste Messias. Ele tem base social, controla o aparelho estatal, movimenta uma máquina infernal de propaganda e desinformação, conta com milícias armadas e a simpatia das forças policiais e das Forças Armadas. Por estranho que pareça, quanto mais o país afunda, mais ele se viabiliza – na lógica do bolsonarismo, apocalipse e salvação se confundem.

Impedir a reeleição deste projeto ruinoso deveria ser uma prioridade muito mais clara para todos os que reivindicam para si a condição de democratas. Isso se o Brasil ainda tiver a pretensão histórica de ser ao menos um arremedo de nação.

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Veja: Em entrevista, a poesia libertária de Cida Pedrosa https://bit.ly/3BKdwhd

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