Entrar na OCDE não vai trazer grandes benefícios ao Brasil,
diz Celso Amorim
Para ex-chanceler, entidade traz
'pseudosselo' para investidores; conselheiro de Lula critica ditaduras latino-americanas
de esquerda
Patrícia Campos Mello, Folha de S. Paulo
Enquanto
empresários e parte do mercado financeiro festejaram o início formal
do processo de ingresso do Brasil na OCDE
(Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), anunciado
nesta quarta-feira (26), o ex-chanceler Celso Amorim pondera que a entrada do
país na entidade deveria ser analisada com calma e outros olhos.
"Não há
grandes benefícios em ser membro da OCDE", diz Amorim, principal conselheiro
do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) para assuntos internacionais.
"Essa coisa desse 'pseudosselo' de qualidade já era, depois do que
aconteceu no Chile e no México." O ex-ministro não vê a entrada na
entidade como uma maneira de aumentar investimentos no país.
Em novembro,
Amorim acompanhou Lula em seu giro
pela Europa, onde o petista pré-candidato à Presidência foi recebido com honras
de chefe de Estado pelo francês Emmanuel Macron.
O ex-chanceler
também critica as prisões
políticas de adversários do ditador Daniel Ortega na Nicarágua ("eu
deploro o que está acontecendo") e nega que o país, em um eventual governo
do PT, vá se alinhar com países bolivarianos. "O nosso modelo não é
Nicarágua, não é Cuba e não é a Venezuela. O Brasil é um país capitalista e vai
continuar sendo."
Ele conversou
com a Folha fazendo
a ressalva de que falava em nome próprio, não do partido ou de Lula.
O ex-presidente Lula esteve na Europa e tinha viagem marcada para o México,
adiada por causa da variante ômicron do coronavírus. Não seria importante uma
viagem aos EUA também? Isso de dizerem que os governos do PT viraram as
costas para os EUA é um absurdo. Óbvio que tivemos diferenças, mas o só o fato
de o presidente
Lula ter sido recebido em Camp David [pelo então presidente George W. Bush, em
2007] demonstra que não é nada disso. Houve
diferenças sobre alguns temas, que foram tratados de maneira adulta.
Existe uma percepção de que um governo Lula teria maior aproximação
com a China. Isso é algo que causa certa inquietação entre os
americanos. Nós
vamos ter uma visão pragmática com a China. Aproximação maior do que a do
governo [Jair] Bolsonaro (PL), do ponto de vista de política, é inevitável. Bolsonaro foi
um desastre absoluto. Ter uma aproximação com a China agora quer
dizer que a gente vai optar pela China em vez dos EUA? Não, nós vamos tratar
pragmaticamente.
A China é
um país muito importante, nossas exportações para lá são quase o triplo do que
as para os EUA, não tem como ignorar isso. A China é um
potencial fornecedor de investimento provavelmente com muito
mais flexibilidade do que os EUA, pela natureza do regime. Isso não quer dizer
que você vai fazer uma opção pelo sistema chinês, mas acho que também não tem
que ser anti-China.
Existe uma pressão a mais agora, em relação a tecnologia. No leilão do 5G, apesar da pressão americana, a chinesa Huawei não foi excluída. Mas essa Guerra Fria tecnológica entre China e EUA vai continuar... Se o 5G já foi com o Bolsonaro, o que eu posso fazer? Quando os EUA eram a principal potência tecnológica do mundo, eles eram o principal fornecedor de tecnologia para o Brasil. Não acho que os chineses se comportam como santos, mas os americanos também não. Os EUA não têm muita autoridade moral para falar em espionagem. Tecnologia não vem marcada como de ditadura ou de democracia. Não existe "comunavírus", da mesma maneira que não existe "comunovacina", na da Pfizer não vem escrito "vacina democrática". Nós temos uma cooperação com a China na área espacial que começou no governo Sarney e continuou: com Collor, Fernando Henrique, Lula. Nós teremos boas relações com os dois. Não quer dizer que você vai seguir o modelo chinês. Mas em algumas coisas o modelo americano também deixa a desejar. O trumpismo não desapareceu, a gente não sabe o que vai ser daqui a dois anos.
Em quais áreas o Brasil pode se aproximar dos EUA? Nós não temos nada contra os EUA. A
Alca [Área de Livre Comércio das Américas] era uma questão difícil, mas isso
não impediu que funcionássemos como parceiros na Organização Mundial do
Comércio de maneira muito ativa. Quem nos convidou para fazer parte do grupo do
núcleo mais central da negociação na OMC foi o Bob Zoellick [ex-vice-secretário
de Estado dos EUA e ex-presidente do Banco Mundial].
O Zoellick fez esse convite antes ou
depois de ele dizer que, se o Brasil não entrasse na Alca, ia ter que fazer comércio com a
Antártica? Ele
falou isso durante a campanha eleitoral [brasileira], depois viu que não era
bem assim. Continuamos não sendo a favor da Alca, não acho que teríamos a
ganhar —você fica muito preso em áreas como propriedade intelectual e
investimentos. É uma coisa muito pragmática, não tem nada de ideológico ou de
antiamericano.
Acho que
tem muita coisa positiva para fazer com os EUA, mas isso não quer dizer que
você tenha que se subordinar totalmente. O Brasil precisa dar uma grande
prioridade à integração da América Latina na América do Sul. Isso é uma coisa
importante, e queremos fazer isso de maneira cooperativa, não hostil com os
EUA. Agora também não é cegamente seguir o que eles querem. Não é porque eles estão
brigando com a Rússia lá por causa da Ucrânia que a gente vai
entrar nisso. Essa briga não é nossa.
Recentemente, emissários do secretário
de Estado dos EUA, Antony Blinken, deixaram claro que queriam apoio do
Brasil em relação a Ucrânia. E o presidente Bolsonaro está indo para Rússia se
reunir com o presidente Vladimir Putin. As coisas são complexas, não dá para
ter simplismos. Ter uma nova Guerra Fria com Rússia ou China e EUA não é bom
para o mundo. O Brasil pode ajudar em diálogo. Eu acho que falta um pouco de
[Henry] Kissinger, de [George] Kennan, na política externa americana.
Não estou
falando de liberais, mas de realistas políticos, pessoas que percebam que o
mundo tem que funcionar numa base de certo equilíbrio. O Kissinger, na época
[durante o governo Nixon], procurou se aproximar da China para contrabalançar a
União Soviética e respeitar as realidades políticas. O Kennan foi sempre contra
a expansão da Otan no Leste Europeu. Mas isso aí é briga deles, não é nossa
prioridade. Precisamos é cuidar da integração na América do Sul, procurar uma
relação muito profunda com a União Europeia.
Crise entre Rússia e
Ucrânia em 2021
O
ingresso na OCDE é prioridade? Acho que a gente tem que ver isso com muito, muito
cuidado —e é uma longuíssima negociação. O que ganharam os países que entraram?
O Chile teve
uma crise do neoliberalismo brutal nas ruas. O México, país que mais
se abriu, foi um dos que mais sofreram com a crise do [banco] Lehman Brothers
[2008]. Ser da OCDE não fez com que o México recebesse mais investimentos que o
Brasil.
Não há grandes
benefícios em entrar na OCDE. A OCDE é, digamos, um templo do neoliberalismo,
que impõe abertura comercial, liberdade de movimentação de capitais, restrições
a propriedade intelectual, genéricos, licença compulsória de medicamentos. Eu
acho que a gente tem que ver isso com cuidado. Não vou demonizar a OCDE, mas
também não vou endeusar. Esse "pseudosselo" de qualidade já era,
depois do que aconteceu no Chile e no México. Talvez possamos fazer uma
negociação conjunta com a Argentina, que também foi convidada. Tem que ser com
calma.
Estamos vendo a movimentação do ex-presidente Lula em
direção ao centro, com gestos para o ex-governador Geraldo
Alckmin, recém-saído do PSDB. Podemos esperar uma política externa
de centro? Nossa
política externa já é de centro, nunca foi de esquerda, é uma política
nacional. Nossa política externa não teve nenhum momento de hostilidade aos
EUA, à UE, apenas deu ênfase a África, América do Sul, Brics, que tinham menos
ênfase.
Houve uma aproximação muito grande com Cuba, Venezuela e
Nicarágua. Não
tivemos aproximação muito grande. Claro que o [Hugo] Chávez nos procurava
muito, mas o [Alvaro] Uribe [ex-presidente da Colômbia] também procurava. Para
a Nicarágua, eu fui apenas uma vez como ministro.
Mas há uma resistência em criticar o regime
da Nicarágua, que não está respeitando a ordem democrática. Não temos obsessão em criticar. Não
quero citar nomes de países. Ficam pressionando: "Ah, não vão criticar
governo que prende, mata e tortura jornalista?". Estão cobrando isso todo
dia de Washington?
Uma coisa não anula a outra. O que o Lula disse, inclusive na
entrevista a El País, é uma crítica [à Nicarágua], ele falou que é contra
eternização de uma pessoa no poder, contra presos políticos. Mas, ao
impor sanções duríssimas, você tira a moral da crítica. Eu acho que você tem
que fazer o diálogo. Em vez de ficar criticando Chávez, nós ajudamos a
estabelecer um mecanismo de diálogo com a oposição, e na época isso ajudou um
pouco. Obviamente resolver os problemas da Venezuela é uma coisa muito mais
complexa. Agora, hostilidade permanente não ajuda.
Existe sim uma crítica em relação aos EUA, de eles não condenarem de forma mais
veemente a Arábia Saudita. Vocês fazem críticas a outros países, mas
não a Nicarágua e Venezuela. Nós não estamos no governo. O nosso modelo não é
Nicarágua, não é Cuba e não é a Venezuela. O Brasil é um país capitalista e vai
continuar. Agora, capitalista com sensibilidade social. Nós defendemos a
democracia de maneira que nos parece mais eficaz, não apenas para agradar a
agenda da mídia ou de outros setores.
O PT
tem criticado fortemente movimentos autoritários do presidente
Bolsonaro, não é paradoxal o sr. achar que a Venezuela e Nicarágua
têm democracias funcionantes? Mas
eu digo isso?
Mas não dizem o contrário. Há maneiras e maneiras de atuar, de
persuadir, de procurar o diálogo. Agora, está havendo mais evolução do que no
tempo do Trump, de ameaças de sanções, de invasão.
Houve uma enorme deterioração das condições nos dois
países. Diálogo ainda funcionaria? Sanção e isolamento não funcionam. Sem entrar no mérito
do governo, o regime de
sanções imposto há 60 anos contra Cuba é um enorme fracasso histórico
de uma política. É através da persuasão. Eu pessoalmente não gosto do que está
acontecendo na Nicarágua, quando vejo pessoas sendo presas, sandinistas
históricos, eu deploro isso. Mas daí a achar que isso tem que ser o
foco da nossa política externa, discordo. Tem muitas outras coisas que a gente
tem que cuidar, é muito mais vergonhoso não defender interesses brasileiros, se
subordinar, como na
época Bolsonaro-Trump.
O Brasil se inseriu nessa aliança cristã ocidental
conservadora, com países como Hungria, Polônia... Como
ficaria esse alinhamento? Isso
é uma coisa tão artificial que, com um sopro, acaba.
E em
relação a Israel, o que muda? Nós tivemos boas relações com Israel no tempo todo em que
estávamos no governo. Mas não vamos deixar de criticar a
ocupação dos territórios palestinos contrariando as resoluções das Nações
Unidas, isso não é ser contra Israel. Nós defendemos historicamente
a solução de dois Estados.
Existem iniciativas em países europeus de aprovar leis que vão punir exportações
do Brasil por causa do desmatamento. Mas o governo acha que isso é
uma campanha negativa da mídia estrangeira e tentativa de protecionismo. Como
se pode consertar essa imagem? Na época da ditadura militar, eu era jovem e estava na
missão do Brasil na OEA [Organização dos Estados Americanos], e chegou um
emissário brasileiro importante falando que o governo estava muito preocupado
com a imagem. Aí o nosso embaixador, o Jorge Álvaro Maciel, disse: "Eu
tenho uma ideia para melhorar a imagem: acaba com a tortura que melhora".
Então se o
Brasil passa a ter uma política de desenvolvimento sustentável coerente, vai
melhorar. Que existem interesses protecionistas, é claro que existem. Agora, se
você tem uma política ambiental como a do governo Bolsonaro, você está dando
todos os pretextos para que esses interesses protecionistas sejam legitimados.
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