29 janeiro 2022

Brasil no contexto mundial

Entrar na OCDE não vai trazer grandes benefícios ao Brasil, diz Celso Amorim

Para ex-chanceler, entidade traz 'pseudosselo' para investidores; conselheiro de Lula critica ditaduras latino-americanas de esquerda
Patrícia Campos Mello, Folha de S. Paulo

 

Enquanto empresários e parte do mercado financeiro festejaram o início formal do processo de ingresso do Brasil na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), anunciado nesta quarta-feira (26), o ex-chanceler Celso Amorim pondera que a entrada do país na entidade deveria ser analisada com calma e outros olhos.

"Não há grandes benefícios em ser membro da OCDE", diz Amorim, principal conselheiro do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) para assuntos internacionais. "Essa coisa desse 'pseudosselo' de qualidade já era, depois do que aconteceu no Chile e no México." O ex-ministro não vê a entrada na entidade como uma maneira de aumentar investimentos no país.

Em novembro, Amorim acompanhou Lula em seu giro pela Europa, onde o petista pré-candidato à Presidência foi recebido com honras de chefe de Estado pelo francês Emmanuel Macron.

O ex-chanceler também critica as prisões políticas de adversários do ditador Daniel Ortega na Nicarágua ("eu deploro o que está acontecendo") e nega que o país, em um eventual governo do PT, vá se alinhar com países bolivarianos. "O nosso modelo não é Nicarágua, não é Cuba e não é a Venezuela. O Brasil é um país capitalista e vai continuar sendo."

Ele conversou com a Folha fazendo a ressalva de que falava em nome próprio, não do partido ou de Lula.

O ex-presidente Lula esteve na Europa e tinha viagem marcada para o México, adiada por causa da variante ômicron do coronavírus. Não seria importante uma viagem aos EUA também? Isso de dizerem que os governos do PT viraram as costas para os EUA é um absurdo. Óbvio que tivemos diferenças, mas o só o fato de o presidente Lula ter sido recebido em Camp David [pelo então presidente George W. Bush, em 2007] demonstra que não é nada disso. Houve diferenças sobre alguns temas, que foram tratados de maneira adulta.

Existe uma percepção de que um governo Lula teria maior aproximação com a China. Isso é algo que causa certa inquietação entre os americanos. Nós vamos ter uma visão pragmática com a China. Aproximação maior do que a do governo [Jair] Bolsonaro (PL), do ponto de vista de política, é inevitável. Bolsonaro foi um desastre absoluto. Ter uma aproximação com a China agora quer dizer que a gente vai optar pela China em vez dos EUA? Não, nós vamos tratar pragmaticamente.

A China é um país muito importante, nossas exportações para lá são quase o triplo do que as para os EUA, não tem como ignorar isso. A China é um potencial fornecedor de investimento provavelmente com muito mais flexibilidade do que os EUA, pela natureza do regime. Isso não quer dizer que você vai fazer uma opção pelo sistema chinês, mas acho que também não tem que ser anti-China.

Existe uma pressão a mais agora, em relação a tecnologia. No leilão do 5G, apesar da pressão americana, a chinesa Huawei não foi excluída. Mas essa Guerra Fria tecnológica entre China e EUA vai continuar... Se o 5G já foi com o Bolsonaro, o que eu posso fazer? Quando os EUA eram a principal potência tecnológica do mundo, eles eram o principal fornecedor de tecnologia para o Brasil. Não acho que os chineses se comportam como santos, mas os americanos também não. Os EUA não têm muita autoridade moral para falar em espionagem. Tecnologia não vem marcada como de ditadura ou de democracia. Não existe "comunavírus", da mesma maneira que não existe "comunovacina", na da Pfizer não vem escrito "vacina democrática". Nós temos uma cooperação com a China na área espacial que começou no governo Sarney e continuou: com Collor, Fernando Henrique, Lula. Nós teremos boas relações com os dois. Não quer dizer que você vai seguir o modelo chinês. Mas em algumas coisas o modelo americano também deixa a desejar. O trumpismo não desapareceu, a gente não sabe o que vai ser daqui a dois anos.

Em quais áreas o Brasil pode se aproximar dos EUA? Nós não temos nada contra os EUA. A Alca [Área de Livre Comércio das Américas] era uma questão difícil, mas isso não impediu que funcionássemos como parceiros na Organização Mundial do Comércio de maneira muito ativa. Quem nos convidou para fazer parte do grupo do núcleo mais central da negociação na OMC foi o Bob Zoellick [ex-vice-secretário de Estado dos EUA e ex-presidente do Banco Mundial].

O Zoellick fez esse convite antes ou depois de ele dizer que, se o Brasil não entrasse na Alca, ia ter que fazer comércio com a AntárticaEle falou isso durante a campanha eleitoral [brasileira], depois viu que não era bem assim. Continuamos não sendo a favor da Alca, não acho que teríamos a ganhar —você fica muito preso em áreas como propriedade intelectual e investimentos. É uma coisa muito pragmática, não tem nada de ideológico ou de antiamericano.

Acho que tem muita coisa positiva para fazer com os EUA, mas isso não quer dizer que você tenha que se subordinar totalmente. O Brasil precisa dar uma grande prioridade à integração da América Latina na América do Sul. Isso é uma coisa importante, e queremos fazer isso de maneira cooperativa, não hostil com os EUA. Agora também não é cegamente seguir o que eles querem. Não é porque eles estão brigando com a Rússia lá por causa da Ucrânia que a gente vai entrar nisso. Essa briga não é nossa.

Recentemente, emissários do secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, deixaram claro que queriam apoio do Brasil em relação a Ucrânia. E o presidente Bolsonaro está indo para Rússia se reunir com o presidente Vladimir PutinAs coisas são complexas, não dá para ter simplismos. Ter uma nova Guerra Fria com Rússia ou China e EUA não é bom para o mundo. O Brasil pode ajudar em diálogo. Eu acho que falta um pouco de [Henry] Kissinger, de [George] Kennan, na política externa americana.

Não estou falando de liberais, mas de realistas políticos, pessoas que percebam que o mundo tem que funcionar numa base de certo equilíbrio. O Kissinger, na época [durante o governo Nixon], procurou se aproximar da China para contrabalançar a União Soviética e respeitar as realidades políticas. O Kennan foi sempre contra a expansão da Otan no Leste Europeu. Mas isso aí é briga deles, não é nossa prioridade. Precisamos é cuidar da integração na América do Sul, procurar uma relação muito profunda com a União Europeia.

Crise entre Rússia e Ucrânia em 2021

O ingresso na OCDE é prioridade? Acho que a gente tem que ver isso com muito, muito cuidado —e é uma longuíssima negociação. O que ganharam os países que entraram? O Chile teve uma crise do neoliberalismo brutal nas ruas. O México, país que mais se abriu, foi um dos que mais sofreram com a crise do [banco] Lehman Brothers [2008]. Ser da OCDE não fez com que o México recebesse mais investimentos que o Brasil.

Não há grandes benefícios em entrar na OCDE. A OCDE é, digamos, um templo do neoliberalismo, que impõe abertura comercial, liberdade de movimentação de capitais, restrições a propriedade intelectual, genéricos, licença compulsória de medicamentos. Eu acho que a gente tem que ver isso com cuidado. Não vou demonizar a OCDE, mas também não vou endeusar. Esse "pseudosselo" de qualidade já era, depois do que aconteceu no Chile e no México. Talvez possamos fazer uma negociação conjunta com a Argentina, que também foi convidada. Tem que ser com calma.

Estamos vendo a movimentação do ex-presidente Lula em direção ao centro, com gestos para o ex-governador Geraldo Alckmin, recém-saído do PSDB. Podemos esperar uma política externa de centro? Nossa política externa já é de centro, nunca foi de esquerda, é uma política nacional. Nossa política externa não teve nenhum momento de hostilidade aos EUA, à UE, apenas deu ênfase a África, América do Sul, Brics, que tinham menos ênfase.

Houve uma aproximação muito grande com Cuba, Venezuela e Nicarágua. Não tivemos aproximação muito grande. Claro que o [Hugo] Chávez nos procurava muito, mas o [Alvaro] Uribe [ex-presidente da Colômbia] também procurava. Para a Nicarágua, eu fui apenas uma vez como ministro.

Mas há uma resistência em criticar o regime da Nicarágua, que não está respeitando a ordem democrática. Não temos obsessão em criticar. Não quero citar nomes de países. Ficam pressionando: "Ah, não vão criticar governo que prende, mata e tortura jornalista?". Estão cobrando isso todo dia de Washington?

Uma coisa não anula a outra. O que o Lula disse, inclusive na entrevista a El País, é uma crítica [à Nicarágua], ele falou que é contra eternização de uma pessoa no poder, contra presos políticos. Mas, ao impor sanções duríssimas, você tira a moral da crítica. Eu acho que você tem que fazer o diálogo. Em vez de ficar criticando Chávez, nós ajudamos a estabelecer um mecanismo de diálogo com a oposição, e na época isso ajudou um pouco. Obviamente resolver os problemas da Venezuela é uma coisa muito mais complexa. Agora, hostilidade permanente não ajuda.

Existe sim uma crítica em relação aos EUA, de eles não condenarem de forma mais veemente a Arábia Saudita. Vocês fazem críticas a outros países, mas não a Nicarágua e Venezuela. Nós não estamos no governo. O nosso modelo não é Nicarágua, não é Cuba e não é a Venezuela. O Brasil é um país capitalista e vai continuar. Agora, capitalista com sensibilidade social. Nós defendemos a democracia de maneira que nos parece mais eficaz, não apenas para agradar a agenda da mídia ou de outros setores.

O PT tem criticado fortemente movimentos autoritários do presidente Bolsonaro, não é paradoxal o sr. achar que a Venezuela e Nicarágua têm democracias funcionantes? Mas eu digo isso?

Mas não dizem o contrário. Há maneiras e maneiras de atuar, de persuadir, de procurar o diálogo. Agora, está havendo mais evolução do que no tempo do Trump, de ameaças de sanções, de invasão.

Houve uma enorme deterioração das condições nos dois países. Diálogo ainda funcionaria? Sanção e isolamento não funcionam. Sem entrar no mérito do governo, o regime de sanções imposto há 60 anos contra Cuba é um enorme fracasso histórico de uma política. É através da persuasão. Eu pessoalmente não gosto do que está acontecendo na Nicarágua, quando vejo pessoas sendo presas, sandinistas históricos, eu deploro isso. Mas daí a achar que isso tem que ser o foco da nossa política externa, discordo. Tem muitas outras coisas que a gente tem que cuidar, é muito mais vergonhoso não defender interesses brasileiros, se subordinar, como na época Bolsonaro-Trump.

O Brasil se inseriu nessa aliança cristã ocidental conservadora, com países como Hungria, Polônia... Como ficaria esse alinhamento? Isso é uma coisa tão artificial que, com um sopro, acaba.

E em relação a Israel, o que muda? Nós tivemos boas relações com Israel no tempo todo em que estávamos no governo. Mas não vamos deixar de criticar a ocupação dos territórios palestinos contrariando as resoluções das Nações Unidas, isso não é ser contra Israel. Nós defendemos historicamente a solução de dois Estados.

Existem iniciativas em países europeus de aprovar leis que vão punir exportações do Brasil por causa do desmatamento. Mas o governo acha que isso é uma campanha negativa da mídia estrangeira e tentativa de protecionismo. Como se pode consertar essa imagem? Na época da ditadura militar, eu era jovem e estava na missão do Brasil na OEA [Organização dos Estados Americanos], e chegou um emissário brasileiro importante falando que o governo estava muito preocupado com a imagem. Aí o nosso embaixador, o Jorge Álvaro Maciel, disse: "Eu tenho uma ideia para melhorar a imagem: acaba com a tortura que melhora".

Então se o Brasil passa a ter uma política de desenvolvimento sustentável coerente, vai melhorar. Que existem interesses protecionistas, é claro que existem. Agora, se você tem uma política ambiental como a do governo Bolsonaro, você está dando todos os pretextos para que esses interesses protecionistas sejam legitimados.

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