18 janeiro 2022

Pandemia: impasses e perspectivas

‘Enquanto prevalecer a ótica do ‘eu primeiro’, não sairemos da pandemia’, diz Paulo Buss, da Fiocruz

Para o especialista, outras letras gregas vão aparecer para nomear futuras variantes e o risco é voltarmos ao “velho normal” sem ter aprendido nada
Por Laura Greenhalgh, Valor Econômico

  

Nos últimos dois anos, o Centro de Relações Internacionais da Fundação Oswaldo Cruz (CRIS) tem sido uma espécie de farol sobre os múltiplos desafios da pandemia provocada pelo Sars-CoV-2. Ciclo de seminários on-line com médicos, cientistas, pesquisadores e estudiosos de políticas de saúde, tanto brasileiros quanto estrangeiros, e dois livros robustos coroam um compromisso que é também de elucidação da opinião pública, cuja seriedade já justificaria a opção pela ciência nestes tempos divergentes.

À frente do trabalho está o médico Paulo Buss, professor emérito da Fiocruz, que presidiu de 2001 a 2008, membro da Academia Nacional de Medicina, presidente da Aliança Latinoamericana de Saúde Global (Alasag) e coordenador do CRIS. À entrada do terceiro ano da covid-19, Buss sente-se como que vivendo entre dois estados d’alma. Na verdade, dois cenários que se confrontam: o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. Teremos razões para mergulhar no desânimo face a uma pandemia ainda longe de ser controlada e sem prazo para sumir do mapa? Ou há motivos para crer que o fim está próximo?

Os desníveis na vacinação permitem que a transmissão comunitária continue forte, levando a novas variantes, como a ômicron”

Nesta entrevista ao Valor, Buss reflete sobre as conclusões do mais recente livro do CRIS, “Diplomacia da saúde: respostas globais à pandemia” (de 2021, formato e-book, download gratuito no portal da Fiocruz), onde, em 32 capítulos, diferentes autores aprofundam abordagens do que aconteceu e ainda estamos vivendo. São experts da área de saúde, mas também diplomatas, cientistas sociais, biólogos, economistas e engenheiros. A precisão das análises, somada à abundância dos dados, convida a leitura. E, entre as conclusões, emergem algumas sobre as quais Buss vem martelando há tempos, como a adoção de uma abordagem global da pandemia. “Enquanto prevalecer a ótica do ‘me first’, não sairemos desta”, garante.

Valor: No prefácio do livro, o senhor evoca o tempo de confronto entre o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. Qual desses cenários deverá prevalecer?

Paulo Buss: Hoje vivemos o pessimismo da razão, lamentavelmente. Nada indica uma mudança no comportamento mundial que leve ao controle definitivo da pandemia, solucionando a enorme desigualdade de acesso a vacinas e produtos. É preciso reconhecer que o manejo da doença melhorou, mas o acesso ao que é básico, ou seja, além dos imunizantes, ventiladores, máscaras, testes, luvas para o pessoal da saúde trabalhar, UTIS, enfim, isso não mudou, especialmente nos países aonde a pandemia chega agora, como a África subsaariana, o sudoeste asiático, o Pacífico oeste. São lugares sem tantos voos internos e com transporte terrestre difícil. Como a circulação de pessoas é menor, estiveram preservados por mais tempo. Agora, não mais.

Valor: Por que a desigualdade de acesso a medicamentos e insumos persiste após dois anos?

Buss: Quando examinamos 2020 e 2021, inegavelmente constatamos avanços na produção de vacinas, alguma regularização do fluxo internacional de produtos, maior disseminação de informação sobre a doença, porém, de forma desigual. Países que não tinham acesso, continuam não tendo. Já os dez países mais ricos do mundo continuam a deter entre 75% e 80% das vacinas produzidas. Hoje há países sem vacinas, enquanto há países que imunizam crianças e revacinam adultos. Mantendo-se essa desigualdade, a pandemia permanecerá fora de controle. Terminamos 2021 sem vislumbrar os patamares da proteção planetária: 40% da população global vacinada até dezembro de 2021 e 60% até abril de 2022. Seriam níveis razoáveis se atingidos de forma equilibrada, não com bolsões de vacinados e não vacinados. Estamos longe disso. Os desníveis permitem que a transmissão comunitária continue forte, levando a novas variantes, como a ômicron, detectada na África e já espalhada no mundo. Fora isso, as vacinas disponíveis dos países ricos não estão chegando satisfatoriamente a lugares onde há carência delas. Essa transferência ajudaria a abordagem global da pandemia.

Valor: Uma parte do público parece não entender relações básicas, como a de que vírus com incubação de cinco a seis dias, como o Sars-Cov-2, tem transmissão alta, daí a necessidade do isolamento. Perderam-se algumas batalhas de comunicação nesses dois anos?

Buss: Onde a comunicação com a população foi coordenada, a doença se manifestou de forma mais branda. Exemplo disso vem de um país periférico, a Nova Zelândia, com um governo trabalhista, competente e responsável. Outros países reagiram de forma racional à pandemia, lidando com diferentes instâncias, governo, sociedade civil, meios de comunicação, para informar corretamente. Já nos Estados Unidos, no Reino Unido e no Brasil, a condução foi problemática desde o início, basta lembrar das atitudes de Donald Trump, Boris Johnson e Jair Bolsonaro. É claro que isso prejudicou o entendimento de aspectos básicos, como o de que o distanciamento nunca foi social, uma vez que as pessoas hoje se conectam o tempo todo, mas físico. Houve também o negacionismo das autoridades maiores, no Brasil, nos Estados Unidos, na Índia. Por fim, não podemos esquecer do movimento antivacina, alimentado por grupos religiosos conservadores, que, segundo a Unesco, falam para 20% da população mundial. Outras letras gregas vão aparecer, nomeando futuras variantes. O risco é voltarmos ao ‘velho normal’ sem ter aprendido nada”

Valor: A pandemia não é socialmente neutra, o que parece ser outro dado difícil de assimilar.

Buss: Ela está diretamente ligada a renda e inserção no gradiente social, daí por que grupos desprivilegiados, como populações afrodescendentes, povos indígenas e os habitantes de zonas miseráveis, sofrem seus impactos de forma mais dura. Mesmo nos Estados Unidos, as reservas indígenas exibem os índices mais altos de contaminação, assim como os territórios dos aborígenes canadenses. Outro exemplo são os idosos. Os de pior condição social foram muito mais afetados. O fato é que estamos atravessando uma sindemia, que tem a ver com a doença e as suas circunstâncias, sejam elas sociais, econômicas, políticas, ambientais, éticas. Sistemas de saúde foram pressionados, mas sobretudo o sistema social como um todo. Em seus múltiplos aspectos, a sindemia olha para dentro e para fora do sistema de saúde, transcendendo a relação indivíduo-vírus.

Valor: O senhor tem sido um crítico da postura “me first” em relação à estocagem de imunizantes pelos países ricos. Quebrar patentes teria sido o melhor caminho?

Buss: É um absurdo que a Organização Mundial do Comércio [OMC] ainda esteja discutindo flexibilizar patentes. Joe Biden, em março de 2021, fez uma declaração surpreendente nessa direção, mas Angela Merkel resistiu, levando consigo a União Europeia. A OMC, depois da manifestação da Índia e da África do Sul pela flexibilização, até marcou uma reunião para discutir o tema, que foi cancelada sine die. A Human Rights Watch, com a organização Médicos Sem Fronteiras, publicou um estudo mostrando existir, no mundo em desenvolvimento, cerca de 100 fábricas de material estéril que poderiam produzir vacinas de RNA contra a covid. São lugares com instalações prontas e pessoal capacitado. O Brasil tem pelo menos cinco deles - o BioManguinhos/Fiocruz e o Instituto Butantã, já conhecidos, e os outros prefiro não nomear para não gerar especulações. Há centros na Argentina e na Colômbia, assim como na África do Sul, na Nigéria e no Senegal. Poderiam prover imunizantes para as suas regiões, distribuindo-os de forma rápida e equânime.

Valor: Dias atrás a Anvisa deferiu o pedido da Fiocruz para a fabricação de uma vacina 100% brasileira, a partir de tecnonologia transferida pela AstraZeneca/Universidade de Oxford, com IFA [ingrediente farmacêutico ativo] feito aqui no país. Isso muda alguma coisa em relação à patente?

Buss: A Fiocruz tem a licença de produção desta vacina, mas vinha fazendo isso com IFA importado. A patente continua sendo da AstraZeneca e da Universidade de Oxford. Agora temos autorização para realizar todo o processo de fabricação no Brasil, o que significa um ganho enorme. Estamos nos preparando para entregar 200 milhões de doses em 2022, a partir do próximo mês, ou talvez mais, dependendo do que for solicitado pelo Ministério da Saúde. Até o final de 2021, a Fiocruz entregou 160 milhões de doses.

Valor: Por que seria interessante disseminar a fabricação de vacinas de RNA em diferentes centros pelo mundo?

Buss: Porque são mais simples de produzir, além de oferecer resposta imune elevada. As patentes das vacinas da RNA hoje estão com Pfizer e Moderna, mas são fruto muito de investimento público, parcerias com universidades,

apoio de governos. Se houvesse permissão para que outros centros produzam os imunizantes, sempre de forma assistida, evidentemente, terminaríamos mais rápido com esse apartheid vacinal. E leve-se em conta que os grandes laboratórios têm também um limite de produção para atender o mundo inteiro.

Valor: O entrave estaria nos grupos farmacêuticos, a chamada Big Pharma?

Buss: A Big Pharma, com o pleno assentimento de governos. A Suíça, onde ficam sedes de importantes empresas farmacêuticas, fez o que para liberar patentes? E a Alemanha? Nada. Esperamos que o novo governo alemão tenha mais abertura para o tema. Mesmo Biden não saiu da retórica. E há a estreita relação entre as empresas farmacêuticas e o mundo financeiro. Fundos são hoje grandes acionistas de laboratórios, confirmando o que já sabemos: o capital financeiro não tem mais cara. Não existe aquela situação de encontrar o Sr. Rockfeller e daí pedir uma ajuda para ele.

Valor: Aliás, um dos capítulos do livro trata do filantrocapitalismo na covid-19. Conta como a Fundação Gates, que era a mais preparada para atuar em defesa da vacina para todos, atuou no interesse de grupos farmacêuticos.

Buss: A Fundação Gates, há mais de duas décadas, tem sido a instituição filantrópica privada mais preocupada com a saúde humana e, em particular, com vacinas. Mas os interesses não explicitados de Bill Gates, que é um capitalista, podem ter influenciado a sua fundação, no curso da covid-19. Não será com os cerca de US$ 8 bilhões anuais da Fundação Gates que resolveremos as emergências sanitárias no mundo. Agora, o que resolve é ouvir o que dizem Tedros Ghebreyesus e Antonio Guterres [respectivamente, diretor-geral da OMS e secretário-geral da ONU]. Os dois, com FMI, Banco Mundial e OMC, criaram um grupo-tarefa no início da pandemia para que o mundo rico pudesse alocar US$ 50 bilhões na Covax Initiative, visando o manejo global da pandemia. Ficou no declaratório. Há meses Tedros anunciou que seriam suficientes US$ 25 bilhões, pois a imunização caminha, e nada conseguiu. Em 2021, G7 e G20 fizeram declarações pomposas em reuniões na Cornualha e em Roma, porém, inócuas. Falta solidariedade. E faltam lideranças.

Valor: O multilateralismo, impotente em 2020-2021, seguirá assim?

Buss: Os Estados-membros da ONU e da OMS, que praticamente são os mesmos, deixaram na mão os seus diretores-gerais e a sua burocracia, que é quem toca os processos. Diretores dessas organizações estão pedindo que apenas seja cumprido o que os Estados-membros assinaram. Idem diretores do Banco Mundial e do FMI: pedem que os países coloquem a mão no bolso e comprem vacinas. Aquele 1 bilhão de doses prometido pelo G7, face a 11 bilhões necessárias, não foi entregue até hoje! Fica-se numa retórica insuportável, diante da realidade que angustia. O apartheid vacinal empurra os países a pensarem em si mesmos, quando a abordagem precisa ser global. A ômicron não veio sozinha. Outras letras gregas vão aparecer, nomeando futuras variantes. O risco é voltarmos ao “velho normal” sem ter aprendido nada, muito menos com a sindemia, que nos alerta sobre atacar as causas das causas. Não melhoramos o câmbio climático, a proteção à biodiversidade, a distribuição dos recursos materiais, ou seja, mantemos a mesma matriz que gerou a covid-19.

Valor: Documento de 2010 da COP15, sobre biodiversidade, ressalta a importância dos “ambientes humanos saudáveis”. A COP26, em Glasgow, e a Cúpula do Clima, convocada por Biden, ambas na pandemia, não aprofundaram esse tema que é crucial.

Buss: Clima e biodiversidade caminham juntos, porque uma coisa condiciona a outra. Não é o habitante da floresta que mata um animal para comer que gera risco sanitário para a humanidade, mas a atividade econômica predatória, seja ela vegetal, mineral ou animal, e a sobrexploração dos recursos naturais rompendo o equilíbrio da biodiversidade, que vão possibilitar o transbordamento do vírus de uma espécie para outra, até chegar ao humano. É o caso dos Sars-Cov anteriores, do zica, do ebola. Essas doenças virais decorrem da alteração do equilíbrio entre clima e biodiversidade.

Valor: O que se ganhou com a investigação da suspeita sobre um laboratório chinês?

Buss: Isso é parte da disputa geopolítica mundial. Estados Unidos e China vão se atacar cada vez mais. Achávamos que essa disputa se reduziria com a chegada do governo Biden, mas não é o que está ocorrendo. Desde os tempos do Trump na Casa Branca, os EUA fazem pressão sobre a OMS com suspeitas infundadas cientificamente, como a de um vírus chinês criado em laboratório. O vírus não escapou do laboratório chinês onde é estudado porque existe biossegurança nessa atividade. A investigação foi feita para sanar dúvidas, mas o problema é de outra ordem. Trata-se de competição geopolítica.

Valor: No livro, diz-se que América Latina e Caribe são a região do mundo mais castigada pela covid-19. Com que base se afirma isso?

Buss: A América Latina hoje não é mais o epicentro da pandemia, que se desloca pelo planeta. Mas é a região mais desigual mundo - o que é reconhecido internacionalmente. Essa desigualdade obscena e a falta de intercâmbio dos países da região agravaram a situação. Tivemos a União das Nações Sulamericanas (Unasul), que a meu ver foi o projeto de integração regional mais ousado desde Simon Bolívar, da qual o Brasil se despediu em abril de 2019. Poderia ter sido um importante canal de diálogo na pandemia. Estamos fora da Comunidade dos Estados Latino- Americanos e Caribenhos (Celac), criada com o apoio do Brasil, que dela se retirou em 2020, abrindo mão de um espaço de influência hoje ocupado por México e Argentina. Criou-se, também sob Bolsonaro, o Prosul, com poucos países, Venezuela, Cuba e Nicarágua excluídas, em sintonia com a onda direitista. Agora fala-se em onda rosa na América Latina, com governos mais à esquerda na Argentina, Bolívia e no Chile e, em 2022, com possíveis câmbios políticos na Colômbia e no Brasil. A ver como a diplomacia da saúde ficará. De toda forma, a falta de diálogo entre países prejudicou o manejo da pandemia na região.

Valor: Sistemas de saúde mais resilientes e eficientes - postula o livro. Como vê o SUS hoje? Diz-se que ele precisaria contar com 6% do PIB para enfrentar o legado da pandemia.

Buss: O futuro do SUS vai depender da pressão popular. Dirigentes do setor de saúde, incluindo o ministro Queiroga, fazem declarações sobre a sua importância, mas será preciso defendê-lo, de fato. Talvez os brasileiros estejam mais conscientes da importância do seu sistema de saúde, universal e de modelo tripartite. Viram que ele é capaz de vacinar 2,5 milhões de pessoas em um dia, como no auge da pandemia, e só não fez mais por falta de doses. No entanto, para que ele conte com os recursos necessários, será preciso que a população pressione governantes e toda a classe política. O SUS é um patrimônio brasileiro. Deve estar presente na agenda política de 2022.

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São 9 crimes graves que não podem ficar impunes  https://youtu.be/sJ2lSvc193E

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