Valores
universais – e seu rastro de atrocidades
Deus-cristão,
liberdade, democracia…
Há séculos, Ocidente usa catálogo colonial para justificar guerras insanas. Sua
lógica é sacrificial: violar para proteger. Sua cegueira, seletiva. Despreza mundo
multipolar. Mas pode colher
tempestades
Boaventura de Sousa Santos, Outras palavras
Uma das
características do pensamento dominante consiste em contrastar os princípios
que subscreve com as práticas dos que se lhe opõem. Na época moderna, tudo
começou com a expansão colonial do século XV e XVI pela mão dos portugueses e
dos espanhóis sob a tutela do Vaticano. Missionários, descobridores,
conquistadores anunciavam a “boa nova” de uma religião tida por única e a única
verdadeira, cujos princípios garantiam a igual dignidade de todo o ser humano
perante a criação divina e o direito de todos a libertarem-se da superstição e
a abraçarem a nova civilização, e a aceitar todos os benefícios que dela
decorriam. A suposta qualidade universal dos valores de que eram portadores era
tão saliente quanto evidente era o contraste entre eles e as práticas das
populações nativas, práticas consideradas selvagens, bárbaras, primitivas,
canibais, pecadoras, cuja erradicação justificava a “missão civilizadora”. Uma
linha abissal separava de tal modo os princípios e os valores europeus dessas
práticas que as populações nativas não podiam ser sequer consideradas
plenamente humanas. Por isso, não tratar as populações segundo esses princípios
não só não era contraditório como era a única solução lógica. Se eram
sub-humanos, não fazia sentido aplicar-lhes os princípios e valores próprios de
seres plenamente humanos. A universalidade dos princípios era afirmada ao ser
negada a sua aplicação a seres sub-humanos. Em relação a estes, o importante
era evangelizá-los, levá-los a abandonar as práticas selvagens, o que se tornou
mais fácil e convincente depois que o Papa Paulo III reconheceu em bula de 1537
que os índios tinham alma.
Este
dispositivo colonizador realizava duas operações cruciais: impedia o
reconhecimento de princípios e valores diferentes dos europeus; impedia
contrastar os princípios e valores europeus com as práticas dos europeus.
Tratava-se de uma nova versão de universalidade feita de duas ressalvas que a
negavam, mas cuja negação era eficazmente invisibilizada. Basta ler a Brevísima
relación de la destrucción de las Indias de Bartolomé de Las Casas,
publicada em Sevilha em 1552, para termos uma ideia de como este dispositivo
operou, e os crimes, atrocidades, destruições e pilhagens que ele justificou.
Las Casas mostra de modo eloquente as duas verdades ocultadas pelo dispositivo
colonial. Por um lado, o contraste chocante entre os princípios proclamados
pelos conquistadores europeus e as suas próprias práticas; por outro lado, o retrato
falso ou parcial das práticas indígenas e a recusa dos europeus em reconhecer
que esses povos tinham princípios e valores que rivalizavam, por vezes com
vantagem, com os europeus. Tanto o escândalo da obra de Las Casas ao tempo em
que foi publicada como o sucesso que veio a ter no século seguinte mostram em
que medida o dispositivo colonial próprio do pensamento dominante europeu,
apesar de desmascarado, continuou a vigorar como que animado por uma hipocrisia
estrutural que, em vez de o enfraquecer, se transformou em sua fonte de vida.
Até hoje.
Do ponto
de vista da sua gênese, os princípios e valores universais europeus (mais
recentemente também ditos ocidentais) são uma contradição nos termos porque, se
são europeus, não podem ser considerados universais e, se são universais, não
são europeus. Mas esta contradição é provavelmente própria de outros princípios
e valores não europeus. E o mesmo pode dizer-se da hipocrisia ou duplicidade
estrutural que habita quaisquer conjuntos de princípios e valores formulados em
abstrato. O que distingue os princípios europeus é o domínio político,
econômico e cultural do conjunto de países que desde o século XV-XVI se
arrogaram o direito de os reclamar como seus e de os impor aos outros sob o
pretexto de serem universais. Esse conjunto variou ao longo dos séculos.
Começou por ser ibérico, depois foi europeu, e é euro-norte-americano desde o
fim da Primeira Guerra Mundial. Merecem, pois, uma reflexão específica. São
muitos os dispositivos que asseguram a duplicidade e a põem ao serviço dos
interesses da potência hegemônica.
(1) Fazer
valer universalmente os valores universais é um dever dos povos que os
reconhecem como seus. A imposição, mesmo que motivada por interesses próprios,
deve ser sempre legitimada por razões benévolas e do interesse das próprias
vítimas da imposição. Foi com esta justificativa que o direito internacional
emergiu, pela pena de Francisco de Vitoria (1483-1546), para justificar a
ocupação colonial de povos que, apesar de humanos, não se sabiam governar (tal
como as crianças) e deviam, por isso, ser objeto de proteção e tutela por parte
dos colonizadores.
(2) A
hierarquia de valores. Todos os valores são universais, mas uns são mais
importantes que outros. Com John Locke (1632-1704), nos alvores do capitalismo,
o direito de propriedade individual precede todos os outros. Ainda que Locke
limitasse inicialmente o direito natural de propriedade aos frutos do trabalho,
esse direito foi-se estendendo até abranger tudo o que fosse necessário para a
produção, e esta consiste na criação de valores de troca. Desde então, a
hierarquia entre os valores depende das conveniências conjunturais de quem a
pode impor. Se nuns casos é prioritária a defesa da soberania dos Estados,
noutros é a defesa da autodeterminação dos povos. Por sua vez, a segurança
nacional (um conceito recente que veio substituir o conceito de segurança
humana) tem vindo a prevalecer sobre os direitos e liberdades da cidadania, tal
como a segurança alimentar se tem vindo a impor à soberania alimentar.
(3) A
seletividade e os critérios duplos na invocação dos valores universais. Entre
1975 e 2000, as mídias globais silenciaram as atrozes violações de direitos
humanos do povo timorense (que acabava de conquistar a independência contra o
colonialismo português) por parte da Indonésia, que invadiu o país poucos dias
depois da visita de Henri Kissinger a Jacarta. Para os EUA, a Indonésia era na
altura um país estrategicamente importante para travar o avanço do comunismo na
região, e esse fato justificava o sofrimento imposto aos timorenses. Na atual
guerra da Ucrânia, muitos crimes de guerra terão sido cometidos por ambas as
partes. Mas o silêncio sobre crimes cometidos por tropas ucranianas contrasta
com o incessante noticiário sobre os crimes das tropas russas. Passou
despercebida a notícia de 13 de maioo no insuspeito Le Monde: tinha
acabado de confirmar a autenticidade do vídeo em que soldados ucranianos matam
a sangue frio prisioneiros de guerra russos desarmados, um gravíssimo crime de
guerra nos termos da Convenção de Genebra. Veremos se será punido como todos os
outros que tenham sido cometidos. A mesma seletividade ocorre no caso de outro
valor universal, o direito à autodeterminação dos povos. Como temos visto, em
alguns casos ele é justamente defendido (o caso da Ucrânia), enquanto noutros
ele é injustamente negado (casos da Palestina e da República Árabe Saaraui
Democrática).
(4) O
caráter sacrificial da defesa de valores, isto é, a necessidade de os violar
para supostamente os defender. Foi em nome da democracia e dos direitos humanos
que se invadiu um país soberano, o Iraque, e se cometeram gravíssimos crimes de
guerra, hoje documentados graças às revelações do Wikileaks. O
mesmo se passou no Afeganistão, Síria, Líbia e, anteriormente, no Congo-Kinshasa,
Brasil, Chile, Nicarágua, Guatemala, Honduras, El Salvador, etc. Mas tudo
começou muito antes, desde os primórdios do colonialismo. O genocídio dos povos
indígenas foi sempre justificado para os salvar de si mesmos. E Afonso de
Albuquerque, segundo Governador da Índia, sempre justificou a conquista do
comércio das especiarias, até então controlado pelos comerciantes muçulmanos,
como uma vitória da cristandade sobre o Islã.
(5) A
importância de manter o monopólio sobre os critérios para decidir sobre
situações normais e situações de emergência ou de exceção, sendo certo que
nestas últimas é legítimo violar alguns dos princípios e valores universais.
Depois dos ataques às Torres Gêmeas de Nova Iorque, muitos países foram levados
a adotar, independentemente das condições locais, medidas excepcionais de luta
contra o terrorismo, nomeadamente a promulgar novas normas de criminalização do
terrorismo (o “direito penal do inimigo”) que violam os princípios
constitucionais do primado do direito. Muitos países aproveitaram esta
legislação de exceção para eliminar ou neutralizar adversários políticos, agora
considerados terroristas. Foi o caso dos militantes indígenas Mapuches do Chile
por defenderem a integridade dos seus territórios.
(6) A
interpretação legítima dada aos valores universais é a que é ratificada pela
potência hegemônica do momento. As liberdades autorizadas justificam a
repressão das liberdades não autorizadas. Sabe-se hoje que o regime da Líbia
foi violentamente eliminado porque o General Kadhafi pretendia dar consistência
política à União Africana e substituir o dólar nas transações de petróleo. Da
mesma forma, muitos países, sobretudo latino-americanos, centro-americanos e
asiáticos, sabem por trágica experiência que eleger democraticamente os seus
presidentes não os protege de interferências, golpes e mesmo imposição de
ditaduras, se os EUA virem na eleição uma ameaça aos seus interesses econômicos
ou geoestratégicos.
(7)
Quando não é possível silenciar as violações dos valores universais por parte
de aliados da potência hegemônica, tais violações devem ser trivializadas ou
justificadas por referência a outros valores supostamente superiores. A
ocupação colonial e ilegal da Palestina por parte de Israel — uma das mais
graves violações do direito internacional dos últimos sessenta e cinco anos —
tem beneficiado de muitas justificações diretas ou indiretas por parte da
Europa (incapaz de enfrentar de forma mais honesta as suas responsabilidades
históricas) e por parte dos EUA (“Israel é o único país democrático da
região”). Crimes de Estado, como o recente assassinato da jornalista
palestiniana Shireen Abu Akleh, não merecem mais que uma nota de pé de página,
mesmo se tais crimes obedecem a um padrão. Segundo o Ministério da Informação
da Palestina, 45 jornalistas foram assassinados por forças israelenses desde
2000.
(8) Expor
documentadamente a violação dos valores universais por parte de quem os advoga
e, com isso, a hipocrisia e a duplicidade reinantes é considerado um ato
inimigo e suscita uma reação implacável que nenhum valor universal pode
limitar. Nem sequer o direito à vida. Julian Assange é hoje o símbolo vivo
desta duplicidade. Ter exposto os crimes de guerra cometidos no Iraque e ter
defendido o anonimato das suas fontes transformou-o num alvo a abater sem dó
nem piedade. Com a sua ação, Assange defendeu um dos valores universais, o
direito à informação e à liberdade de expressão. Os crimes que denunciou deviam
ser de imediato investigados e punidos em tribunais nacionais e internacionais.
Em vez disso, é ele quem é punido e será provavelmente eliminado. Em vídeo
recente, a sua esposa declara ter informações de que a CIA planeja matá-lo se
não for extraditado para os EUA. De todo o modo, nas condições em que se
encontra, a sua morte nunca será uma morte natural.
(9) Os
valores universais são um catálogo que pode ser consultado por todos, mas só as
potências hegemônicas decidem o que entra nele. Por um lado, são considerados
ocidentais valores e princípios que muitas vezes na sua origem não são
europeus. A sua apropriação quase nunca decorre de diálogos interculturais
horizontais, antes envolve frequentemente distorções e seletividades
ideológicas. A filosofia grega, que todos prezamos, só em meados do século XIX
foi considerada patrimônio exclusivo e distintivo da Europa. Até então era
consensual reconhecer as suas raízes na cultura antiga do norte de África,
nomeadamente de Alexandria, e da Pérsia. Também se reconhecia que, sem a
cooperação da cultura árabe muçulmana, a filosofia grega não teria chegado ao
nosso conhecimento: da Casa da Sabedoria da dinastia dos Abássidas em Bagdá no
século IX até à escola de tradutores de Toledo dos séculos XII e XIII. Também o
Cristianismo é considerado um patrimônio ocidental, apesar de ter nascido no que
é hoje o Próximo Oriente.
Por outro
lado, desde o século XVI não são admitidos no catálogo dos valores universais
contribuições não ocidentais que não se deixem submeter a apropriação (melhor,
expropriação). A razão desta situação resulta, como referi, do domínio global,
econômico, social, político e cultural do mundo europeu desde o século XV-XVI.
Num momento em que a China emerge como uma potência capaz de disputar o domínio
global ocidental, é oportuno perguntar por quanto tempo o catálogo dos valores universais
vai ficar sob domínio ocidental e com que consequências. As transformações não
serão necessariamente para melhor, e podem até ser para muito pior, sobretudo
para a região cultural que até agora dominou o mundo. É inquietante imaginar
que os países ocidentais sejam amanhã quem sofre com a duplicidade e hipocrisia
dos valores universais em mãos de novos “donos”.
É
possível que a caricatura degradante que o ocidente fez do oriente (uma
caricatura denunciada por Edward Said em Orientalism) seja amanhã
substituída pela caricatura igualmente degradante que o oriente fará do
ocidente (o Ocidentalismo)? Passar-se-á do eurocentrismo ao
sinocentrismo? Ou poderemos finalmente aspirar a um mundo sem pontos cardeais
nem centros hierárquicos onde a diversidade cultural, política e epistêmica
seja possível, sob a égide de valores emancipatórios que não se deixem violar
segundo as conveniências de quem tem mais poder?
[Ilustração: Francisco de Goya]
.
O fato e a versão https://bit.ly/3n47CDe
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