MULHERES NA FOGUEIRA
Enquanto
Bolsonaro e assessores praticam violência de gênero, Brasil tem pelo menos 180
estupros por dia; crianças de até 13 anos são 6 em cada 10 vítimas
Thais Bilenky, revista piauí
Pouco depois das oito da manhã da terça-feira, 28 de junho, no Ministério
da Saúde, o secretário de Atenção Primária da pasta, Raphael Câmara, começou a
falar numa audiência pública sobre aborto, marcada às pressas poucos dias
antes. Estava cercado por grades e seguranças. “Qualquer vitima de estupro e
tal – a gente sabe que tem situação de crianças e de pessoas com problema de
retardo mental e tudo mais –, mas, na grande parte das situações, é
imprescindível que a vítima procure uma unidade de saúde [e tome] contraceptivo
de emergência. Quando usado nas primeiras horas, [a popularmente chamada
pílula do dia seguinte] tem eficácia de quase 100%. Virtualmente, a chance
de engravidar é muito pequena.”
Câmara tratou estupro de menor como exceção para reforçar o argumento
contra o aborto da mulher que engravidar após violência sexual – um direito
garantido pela Constituição. Mas ele parte de uma premissa errada. Na mesma
terça-feira, duas horas depois, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
informou que, em 61% dos estupros, as vítimas são bebês e crianças de até 13
anos, que muitas vezes não têm autonomia para procurar ajuda médica. A nova
edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública informou que, em 2021, foram
registrados 66 mil ocorrências de estupro no Brasil, crescimento de 4,2% em
relação ao ano anterior. Isso significa 181 casos por dia, oito por hora. Mas,
dada a subnotificação desse tipo de crime, as vítimas são ainda mais numerosas:
somariam cerca de 290 mil na prática, estima o Fórum. “Frente a tanta violência
cometida majoritariamente contra crianças, o que esses dados nos mostram é a
urgência do direito ampliado ao aborto legal e seguro”, constatam as
pesquisadoras do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Em Brasília, a posição era outra. O secretário Hélio Angotti Neto
(Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde), ao lado de Câmara na audiência
pública, empolou a voz para analisar o léxico da questão. “Em relação à
expressão ‘aborto legal’, torna-se necessário expor que o Código Penal não
prevê aborto legal, mas, sim, a não punição – exclusão de ilicitude”, disse. E
prosseguiu: “O aborto em gestações decorrentes de violência sexual é crime, mas
não é passível de punição, devido ao recurso definido em 1940 pelo Código Penal
em situações muito específicas”. Semanas antes, documento do Ministério da
Saúde foi direto ao ponto: “Todo aborto é crime”, classificou.
Entre
os convidados para a audiência pública estava a juíza Joana Zimmer, que tentou
impedir a realização do aborto por uma menina de 11 anos grávida após ser
estuprada em Santa Catarina. Depois da revelação do caso pelos portais Catarinas e The Intercept
Brasil, na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro
saiu em defesa da juíza. “Sabemos tratar-se de um caso sensível, mas tirar uma
vida inocente, além de atentar contra o direito fundamental de todo ser humano,
não cura feridas nem faz justiça contra ninguém, pelo contrário, o aborto só
agrava ainda mais esta tragédia! Sempre existirão outros caminhos!”, afirmou.
Zimmer não compareceu à audiência pública, mas sua atitude foi justificada pelo
bolsonarismo ali representado. “Como obstetra, para mim não dá essa sociedade
que acha que é normal matar bebês na barriga com sete, oito, nove meses. Eu não
quero fazer parte dessa sociedade”, reclamou, bufando, Raphael Câmara.
Leia também: O ódio às
mulheres desmascarado https://bit.ly/3NAdNch
Dois
dias depois da publicação de Bolsonaro, em meio a insinuações veladas de
bolsonaristas sobre sua história, a atriz Klara Castanho, de 21 anos, tornou
pública a sua decisão de dar à adoção o bebê que gestava, vítima de estupro.
Castanho contou, em uma rede social, que, ao saber da gestação, procurou um
médico que se negou a interrompê-la. “O profissional me obrigou a ouvir o
coração da criança, disse que 50% do DNA eram meus e que eu seria obrigada a
amá-lo”, ela relatou. Na audiência pública, seu caso não foi mencionado
nominalmente, mas uma diretora do Ministério da Saúde, Lana de Lourdes,
defendeu o direito à “objeção de consciência à qual o médico tem direito [de
avocar] na realização de aborto, exceto nos casos
iminentes de morte”.
Para a pesquisadora
Juliana Martins, uma das coautoras dos estudos sobre violência de gênero do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Castanho foi, na verdade, vítima de
violência obstétrica do médico e de violência psicológica pela exposição a que
foi sujeita por uma enfermeira e celebridades que a abordaram sobre o caso,
violando sua intimidade e privacidade. A pré-candidata a deputada federal
bolsonarista Antonia Fontenelle falou de seu caso sem citá-la nominalmente numa
live, expondo detalhes íntimos, provocando a carta aberta da atriz.
A violência psicológica
foi tipificada como crime em meados de 2021, em votações unânimes e expressas
na Câmara e no Senado, com sanção de Bolsonaro. Com isso, no Brasil, desde
então, vai preso por até dois anos e paga multa aquele que causar dano
emocional e perturbar o desenvolvimento de uma mulher.
Nem o presidente acatou
a lei. Nesta quarta-feira, 29, foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São
Paulo por danos morais em ação movida pela jornalista Patrícia Campos Mello, do
jornal Folha de S.Paulo.
Autora de reportagens que revelaram esquema de disparo de mensagens em massa
contra o PT nas eleições de 2018, ela foi vítima de uma campanha de difamação e
ameaças nas redes sociais depois de Bolsonaro dizer que “ela queria um furo.
Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim”. Na primeira instância, o
presidente foi condenado a pagar 20 mil reais à jornalista. Agora a sentença
foi confirmada em segunda instância, apesar de um desembargador ter acatado a
defesa do presidente – ele acabou vencido por quatro votos a um.
O caso de Campos Mello é
pedagógico. Nem sempre a mulher consegue reconhecer que vive uma situação de
violência e, muitas vezes, esbarra na falta de preparo dos agentes de segurança
e de Justiça responsáveis pelo encaminhamento desses casos. Segundo o Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, no ano passado, foram registrados 8 mil
episódios de violência psicológica e 28 mil de crime de perseguição (“perseguir
alguém, reiteradamente, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica,
invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou
privacidade”, com agravamento da pena quando cometido contra mulheres por razão
da condição do sexo feminino). A inclusão desses crimes nos registros oficiais
é fundamental para a prevenção de feminicídios, diz Juliana Martins, doutora
pelo Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo). O desafio é
fazer os policiais que atendem as vítimas entenderem a complexidade dos crimes.
“O que a gente ouve com
certa frequência de mulheres que passam pelo atendimento policial é que não são
ouvidas ou que tentam fazer com que desistam da denúncia. E muitas vezes a
mulher chama a emergência, mas não quer fazer uma denúncia, ou não quer que o
pai dos filhos seja preso”, afirma a pesquisadora.
Segundo Martins, a
estrutura das Polícias Militares não é adequada para o enfrentamento de
violência de gênero, apesar de ser uma das principais causas de ocorrências
atendidas pela corporação. A produtividade do policial, em boa parte dos
estados, é medida por número de prisão em flagrante, de arma apreendida ou
quantidade de droga interceptada. “Atender ocorrências como essas [de
violência de gênero] acaba sendo frustrante para o policial. A
própria instituição policial não valoriza nem reconhece o trabalho de atender
mulheres em situação de violência como relevante, um trabalho da polícia”,
constatou Martins. Não raro, ela acrescentou, como consequência, os policiais
revitimizam a mulher, culpando-a: “Ela está com esse homem porque quer, não quis
denunciar, gosta de apanhar.”
O Anuário levantou que a
taxa de homicídios femininos no Brasil caiu 3,8% entre 2020 e 2021 e a de
feminicídios, assassinatos motivados pelo gênero da vítima, caiu 1,7%. O número
segue alarmante. Nos últimos dois anos, 2.695 mulheres foram mortas por serem
mulheres – quatro vítimas por dia. Quase todos os outros indicadores de
violência contra as mulheres aumentaram no último ano. Houve 3,3% a mais de
registros de ameaça, 0,6% de lesão corporal dolosa em contexto de violência
doméstica; assédio e importunação sexual subiram 6,6% e 17,8%, respectivamente.
O próximo teste das
instituições já começou. Funcionárias da Caixa Econômica Federal denunciaram o
presidente do banco, Pedro Guimarães, ao Ministério Público Federal por assediá-las
em viagens corporativas. Relatam casos de abuso não apenas verbal, mas também
físico – dizem que ele as tocou sem consentimento, além de sugerir promoções
profissionais em troca de relação sexual. Guimarães reagiu dizendo ter “uma
vida pautada pela ética”, mas não se pronunciou sobre a denúncia, revelada pelo
portal Metrópoles. Um assessor seu diz que o caso não passa de frescura e
oportunismo eleitoral. Conta que ele é “brincalhão”. Quando almoça com colegas,
gosta de tirar sarro, por exemplo, botando pimenta no prato dos outros.
Para a cúpula da Caixa,
se Guimarães deixar o cargo, que assumiu desde o primeiro dia de governo
Bolsonaro, em 2019, abrirá precedente para mais denúncias em outros órgãos. E
isso deveria ser evitado – é a palavra delas contra a dele, sem solidez nos
relatos, alegam. O Ministério Público e a Justiça dirão.
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Veja: Quem semeia o caos colhe o quê? https://bit.ly/3zPlBnw
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