Luciano Siqueira, no livro “O Vermelho é Verde-Amarelo”
Os
festejos natalinos não tinham o colorido habitual nos duros dias de militância
clandestina, no início dos anos 70. Longe de nossas famílias, disfarçávamos a
saudade alimentando uma postura aparentemente severa e fria como convinha aos
bons revolucionários. Porém, no íntimo, sentíamos muito, a sensibilidade à flor
da pele, pronta para derramar emoção.
É
o que aconteceu naquela noite próxima ao 25 de dezembro, na Levada, bairro
miserável da região central de Maceió, à época, anos 70, citado na imprensa
como detentor do índice mais elevado de mortalidade infantil do País. Na
companhia de Oswald Barroso, hoje premiado poeta, dramaturgo e jornalista
cearense, então dirigente regional do PCdoB, resolvemos jantar no “Bar e
Restaurante Ideal”, tosco barraco de madeira sobre chão de barro batido. No
cardápio, a sopa gordurosa acompanhada de meio pão francês e um café pequeno
fraco e doce, acessível aos dois jovens comunistas que viajavam quase lisos.
Nada mal para quem havia almoçado pão crioulo com caldo de cana na praia da
Avenida.
Conversávamos
em voz baixa, simulando naturalidade, os olhos atentos à porta de entrada:
estaríamos sendo seguidos? Teríamos despertado a atenção de algum policial?
Mal
começamos a nos servir, entra um motorista de ônibus, sacola a tira-colo, calça
azul marinho e camisa branca, põe uma ficha na radiola e aos primeiros acordes
do bolero Perfume de Gardênia na voz lancinante de Ângela Maria, convida a
garçonete:
-
“A senhorita me concede?”
-
“Virgem! Tas metido a gente fina, homem?”
Movimentos
graciosos no exíguo espaço disponível. Leveza. Os dois dançarinos bailam em
grande estilo, quase flutuam.
Interrompemos
a refeição, suspendendo nossa conversa conspirativa, deixando-nos embevecer
pela performance da garçonete e do motorista, que nem astros de uma grande
companhia de danças em deslumbrante ribalta. Percebendo o sucesso diante da
diminuta platéia, sorriem felizes a exibir em suas faces vincadas pelo
sofrimento a mais comovente alegria.
-
Incrível como nosso povo consegue ser feliz numa situação dessas! - observa
Oswald, os olhos marejados.
-
Sim, fascinante, uma lição de vida. Imagine a festa que será a Revolução num
país que tem um povo assim.
Impossível
lembrar sobre o que conversávamos naquela noite. Permaneceu, porém, a convicção
de que no drama ou na alegria há muito que aprender com o nosso povo. Basta
observar. E ter a sensibilidade para perceber.Leia mais sobre temas da atualidade: http://migre.me/kMGFD
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