Marco Albertim, no Vermelho
Por mais de cinquenta
anos, o professor Jorge Contreras usou paletó e gravata. Agora tem oitenta, não
usa paletó, mas ostenta sobre a camisa de linho engomada, uma gravata vermelha
ou azul, com pintas brancas de cima a baixo, feito pingentes rutilantes.
-Sente-se
aí – disse ele ao rapaz. Depois emendou:
- Você
vai almoçar na mesa onde almoçou o maestro Carlos Gomes, o autor d’O Guarani.
O moço
não deu tratos à informação. Estava de olho na sopa de ervilhas. O velho, junto
com sua irmã, Alzira, tão encarquilhada quanto ele, tinha o costume de fazer da
sopa o antepasto. A comida era servida pela cozinheira que, de tão antiga nos
costumes domésticos, ninguém a estranharia se metesse o bedelho nos assuntos da
família. A cozinheira puxava por uma perna, a direita, e a cada passo jogava o
tronco miúdo do corpo para a frente. Negra, tinha um único filho, dentista cuja
formação tivera a ajuda financeira do professor Jorge Contreras. Domingas, como
sua mãe era chamada, envelhecera sem ter cuidado com os dentes, perdera
incisivos e caninos nas duas arcadas. Não se tem notícia de como deu seu
derradeiro suspiro, inda que se tenha como certa a sua morte.
Domingas
serviu a sopa, depois de guarnecer a mesa, ao lado de pratos e talheres, com
guardanapos de pano, envoltos numa argola de bronze. Também os talheres, de
bronze, já com o brilho desbotado, davam conta dos hábitos aristocráticos no
casarão da Encruzilhada.
- O
senhor vai votar em quem? – inquiriu o rapaz.
- Não
voto mais. Sou dispensado por causa da idade. Mas se tivesse de ir às urnas,
levaria uma banana de dinamite para pôr fim à hipocrisia do voto.
O
rapaz conteve o ímpeto de, respondendo, assessorar o juízo insurreto do
professor. Se estivesse no quarto com ele, sentado à escrivaninha, lendo,
enquanto o professor, deitado, deslizando os dedos das duas mãos na gravata,
sem tirar os sapatos, ouvindo-o... Aí sim, seria capaz de recrutá-lo, ainda que
velho e cego, segurando a bengala de castão liso, envernizado, tão conforme com
os móveis da sala e da cozinha.
Enquanto
servia a sopa, Domingas não interrompia o monólogo com o passado. Ninguém
respondia a seus balbucios, posto que, solitária, tinha a mania de reabilitar
com a inquietude da boca, alguma prosa ruidosa que tivera com afins e
conhecidos diversos. Todos já levados para a fundura da cova, mas ainda
espreitando o juízo caduco de Domingas.
Antes
que o professor Jorge Contreras e sua irmã engolissem a última porção da sopa,
Domingas correu para a sala; tirou de sob o jacarandá de verniz preto da
radiola, o disco do maestro Carlos Gomes; tirou e trouxe-o para a sala do
almoço. Num canto da parede, sob o gradil de ferro separando a casa do quintal,
o toca-discos fora instalado. Era usado de raro em raro. Mas o professor
mencionara o maestro. Domingas, ouvindo-o, interrompera o monólogo para dar
provas do pronto acolhimento às memórias do patriarca sem família numerosa;
aliás, os dois, irmão e irmã, nunca se casaram. Com o gesto, a cozinheira
mostrou-se desinibida no uso dos móveis; desinibição, diga-se, sem amostragem.
O bife
suculento posto no centro da mesa, acentuou a prodigalidade do velho, no trato
com as despesas. Não que desse mostras de ostentação, mas sem evitar o viço
remoto de um senhorio findo ou em vias de sumir. O aroma da carne, sentia-o até
as paredes, visto que a cal da pintura, apagada, conservou a textura de uma
antiguidade bem provida, robusta.
Domingas,
àquela altura retomando o balbucio, não interrompeu o ir e vir entre a cozinha
e a sala. Alzira, com a voz grave, não contradizia as opiniões do irmão;
acostumara-se às singularidades dele e com ele, deixara-se curtir no celibato
involuntário.
Depois
do almoço, os três foram para o terraço; para a sesta tão cultuada pelos velhos
e estreada pelo rapaz. A sobremesa foi servida ali, no terraço, cada um sentado
numa cadeira de respaldo largo. Alzira sentiu sono, levantou-se e foi para o
seu quarto. Domingas, por certo às turras com algum desafeto já morto, comia na
mesa desocupada pelos patrões.
O
rapaz, então, arriscou:
-
Doutor Jorge, o senhor nunca esteve com mulheres?
- Com
muitas, mas não tenho uma boa lembrança da última vez que deitei com uma.
-
Conte-me.
- Fui
para o Cassino Americano, em Boa Viagem. Ganhei algum no bacará. Convidei a
mulher que estava do meu lado, para tomar uma bebida. Bebemos. Não foi difícil
levá-la para a suíte. Quando nos deitamos, nus, vi uma barata sair do alto de
uma parede para a outra. Senti uma repulsa que me revolveu todo. Dali em diante
não tive mais ereção.
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