"Dever-ser" jurista ou "ser" militante?
Vítor Marques, no GGN
Uma
das riquezas do Estado Democrático de Direito é a garantia da convivência
pacífica na divergência. Aquele que diverge não é inimigo, e, portanto, não
deve ser agredido ou perseguido. Aquele que diverge, contribui para a reflexão,
enriquece o conhecimento.
É
notório que em muitas áreas do conhecimento, o que se apreende teoricamente é
modificado no campo da ação social concreta. Na Faculdade de Direito, estuda-se
o mundo do “dever-ser” como aquele a ser alcançado, o das garantias individuais
consolidadas na Constituição Federal, dos princípios explicitados e das
cláusulas pétreas. Mas, nas decisões jurídicas, o que se verifica cada vez mais
é que o mundo do “ser” tem preponderado e torna-se recorrente primeiro decidir,
conforme convém, e depois justificar a determinação. Como afirma o jurista
Lênio Streck, primeiro se “atravessa de uma montanha a outra e, depois,
retorna-se para construir a ponte pela qual já passou”.
Isso
tem sido verificado com frequência nas grandes decisões recentes do Supremo
Tribunal Federal, STF. Causa de intensos debates no Poder Legislativo e no
Poder Judiciário, ambos atentamente observados pela sociedade, a discussão
sobre o rito procedimental do impeachment da presidenta Dilma
Rousseff, admitido pelo presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, parece ter
sido, após diversas manobras deste parlamentar, pacificado pelo Supremo
Tribunal Federal em 17/12/2015. Certamente esta data será sempre lembrada e
celebrada pelos que não aceitam retrocessos em relação ao Estado Social Democrático
de Direito e será um marco vitorioso da solidez das instituições brasileiras
sobre as conveniências políticas tacanhas.
No
seio desse momento maiúsculo do STF, chama a atenção e jamais passaria
despercebido, o amiudamento de algumas posturas contraditórias, felizmente
derrotadas. Por exemplo, a diferença explícita entre o mundo do “dever-ser”,
ensinado em doutrina, e o mundo do “ser” militante, ambos habitantes do
Ministro Gilmar Mendes.
No
mundo do “dever-ser”, em seus escritos jurídicos sobre o “Poder Executivo”
(Curso de Direito Constitucional, 2013, Pag. 931), no tópico relativo ao impeachment, o
jurista Gilmar Mendes, ao tratar da comissão especial da Câmara Federal que
deve apreciar a denúncia recebida, ensina que “Se a matéria for considerada objeto
de deliberação, será designada uma comissão especial para apreciá-la”. Ou seja,
haverá uma comissão indicada pelos líderes de cada partido.
Já
no mundo do “ser”, o militante Gilmar Mendes vota pela possibilidade da
existência de chapa alternativa, ou seja, pela existência de uma eleição,
conforme aventou o presidente da Câmara Eduardo Cunha.
No
mundo do “dever-ser”, o jurista Gilmar Mendes no livro supracitado, ao abordar
o tema da defesa prévia, cita, não se opondo, que “O Supremo Tribunal Federal,
por maioria de votos, reconheceu o direito de defesa nessa fase preliminar, e
por isso, deferiu ao impetrante prazo de dez sessões para exercê-lo, com base
na aplicação analógica do art. 217 do Regimento Interno da Câmara dos
Deputados”... ”Na ocasião, argumentou o relator, Ministro Gallotti, que, embora
o papel da Câmara dos Deputados no processo de crime de responsabilidade
estivesse limitado à admissão ou não da denúncia, as consequências graves
relacionadas com o afastamento do cargo não poderiam permitir que se não
reconhecesse, também nessa fase prévia, o direito de defesa”.
Já
no mundo do “ser”, o militante Gilmar Mendes não reconhece a gravidade do
possível afastamento da presidenta da República, e, portanto, opõe-se à defesa
prévia.
No
mundo do “dever-ser”, o jurista Gilmar Mendes, em relação à função do Senado
Federal, na mesma publicação, preleciona que “Instaurado o processo pelo Senado
Federal, será ele (Presidente da República) suspenso de suas funções (CF, art.
86, § 1º, II)”. E, ainda, que “No Senado Federal, desdobram-se o processo e o
julgamento do impeachment. O Senado Federal transforma-se, assim, em um
Tribunal político, que será presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal
Federal (CF, art. 52, parágrafo único). Recebida a autorização da Câmara para a
abertura do processo, será ela lida na hora do expediente da sessão seguinte,
devendo ser eleita na mesma sessão a comissão processante, constituída por ¼ da
composição do Senado”.
Já
no mundo do “ser”, o militante Gilmar Mendes entende que a Câmara dos Deputados
pode impor a sua vontade ao Senado Federal, contrariando, assim, o preceito
constitucional antes por ele defendido.
E
por fim, e não menos conflitante, o jurista Gilmar Mendes, no mundo do
“dever-ser”, expõe e ratifica que “O Tribunal indeferiu, porém, pretensão
formulada pelo Presidente Collor no sentido de que se aplicasse ao processo
norma regimental que previa o voto secreto. Considerou-se subsistente a norma
da Lei n. 1079, de 1950, que estabelecia o processo aberto de votação. Assim,
não mais subsiste dúvida de que a votação quanto à admissibilidade ou não da
denúncia, perante Câmara dos Deputados, há de fazer-se de forma nominal
(ostensiva)”.
Já,
o militante Gilmar Mendes, reincidentemente, contrário às suas próprias ideias
e aos princípios da transparência, da integridade e do acompanhamento popular,
milita para que o voto seja secreto, obscuro, passível de pressões escusas.
Um
juiz deve se pronunciar nos autos, com imparcialidade, equilíbrio e ponderação.
O Ministro / Militante Gilmar Mendes, reiteradamente manifesta suas opiniões de
forma antecipada por meio da mídia. Condena de forma açodada e fora dos espaços
apropriados para os ritos jurídicos. O que a sociedade espera dos Poderes, é
que eles sejam respeitados e cumpram o seu papel. Saímos do período em que o
Rei era o Estado.
Para
o bem das instituições e da democracia, o Supremo Tribunal Federal deve ser o
guardião da Constituição Federal, garantindo que ela esteja acima de qualquer
interesse político-partidário.
Precisamos
de juristas no Supremo Tribunal Federal e de militantes na Política. Qualquer
confusão de papéis nas distintas esferas pode causar danos profundos à
Democracia, duramente reconquistada.
Vitor Marques, 22 anos, estudante
do 4º ano de Direito da PUC-SP, está Secretário Municipal de Juventude do PT da
cidade de São Paulo.
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