“Onde está meu filho?" Grito de uma mãe que a ditadura não fez
calar
Marcelo Santa Cruz*, no Diário de
Pernambuco
É impossível
expressar em um texto, a memória armazenada e o sentimento de afetividade que
um familiar é possuído quando ocorre o “desaparecimento político”, eufemismo de
assassinado sob torturas. O “desaparecido” é aquela pessoa querida arrancada de
sua família e do mundo, mediante sequestro e assassinado sob torturas, ocultado
o cadáver e a sua morte não é anunciada. Fica inconcluso o círculo da vida, o
desaparecido não morre, permanece vivo na memória de seus familiares e amigos
da causa pela qual sua vida foi sacrificada. Encontra-se sempre presente nas
lutas por justiça, paz e liberdade, contra as injustiças sociais e as
desigualdades de toda ordem e natureza. Somos de uma família marcada pela
repressão da ditadura civil militar, implantada no país no dia 1º de abril de
1964. Provamos do sofrimento decorrente de minha expulsão da Faculdade de
Direito da UFPE, pelo Decreto Lei 477/69, proibido de estudar em qualquer
estabelecimento de ensino pelo período de três anos e do exílio. Minha irmã
Rosalina, submetida ao sequestro, prisão ilegal e ao martírio de inomináveis
sessões de torturas, tendo permanecido privada de liberdade pelo período de 1
(hum) ano e sua demissão do emprego no Banco Nacional de Habitação (BNH).
Podemos afirmar que o lado mais perverso e bestial da repressão é, sem dúvida,
o “desaparecimento”. Essa certeza constatada quando do sequestro e assassinato
de meu irmão Fernando Santa Cruz, quinto filho do médico sanitarista Lincoln e
Elzita, mulher guerreira e de luta, constituíram uma prole numerosa de seis
mulheres e quatro homens. Fernando, sequestrado no Rio de Janeiro, em
23/02/1974, junto com o seu amigo Eduardo Collier Filho. Era casado, tinha 26
anos, 1 (hum) filho Felipe (a época com dois anos), acadêmico do curso de
Direito da Universidade Federal Fluminense, havia sido selecionado, estava
trabalhando no Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo.
Militante político da Ação Popular Marxista Leninista (APML), organização que
se insurgia contra o estado repressor e a favor da democracia e do socialismo.
Passados 45 anos de seu sequestro e desaparecimento, Fernando não mais pertence
aos seus familiares, faz parte do patrimônio de lutas do povo brasileiro por
justiça, liberdade, contra qualquer forma de discriminação e preconceitos de
quaisquer natureza. Por fim, Fernando era uma figura humana mais completa que
convivi, afetuosa, leal, amiga, solidária nas horas de bonanças e dificuldades.
É oportuno ressaltar que faço parte da Coordenação do Comitê Memória, Verdade e
Justiça de Pernambuco, e este artigo veiculado no dia 23 de fevereiro de 2019,
homenagem que presto nos 45 anos do seu assassinato sob torturas. Permanece
sempre presente através dessa nova geração, formada de netos(as),
sobrinhos(as), novos amigos(as) e companheiros(as) que substituem aqueles
familiares e amigos(as) que não mais estão neste mundo, decorrência natural da
transitoriedade da vida. Assim, haverá sempre alguém para cobrar a verdade
desnudada, preservar suas memórias e fazer justiça em relação aos
desaparecidos, os mortos sem sepultura. Recorro para expressar todo o
sentimento de memória, verdade, justiça e afetividade, fazendo nos versos
recitados muitas vezes pela minha querida mãe, Elzita Santa Cruz, (atualmente
com 105 anos), clamava sem obter resposta: “Onde está meu filho?” Grito de uma
mãe que a ditadura não fez calar.
Hei de vê-lo voltar,
ela dizia; meu doce consolo, meu filhinho; passam os anos, o véu do
esquecimento; baixando sobre as coisas tudo apaga; menos da mãe o triste
isolamento; a saudade que o coração lhe esmaga.
* Irmão de
desaparecido político Fernando Santa Cruz, advogado e membro da Coordenação
Colegiada do Comitê Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco.
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