27 julho 2021

Caso de intolerância agressiva

Até as pedras gritarão

Cícero Belmar*


Sabe quando o gato descobre que possui um rabo e acha superdivertido brincar, dando voltas em torno daquele apêndice, querendo pegá-lo? Transpondo essa alegoria para a nossa pobre realidade humana, é triste mas é verdade: nós somos o bichano. Sem a diversão da brincadeira.

Na linha da história e do tempo, em vez de seguirmos em frente, damos voltas tentando alcançar nossa própria traseira. Somente a escuridão da Idade Média, por exemplo, justifica o que aconteceu em Fortaleza, Ceará, no início do mês. O cenário foi a Igreja da Paz, localizada no bairro de Aldeota.

Domingo, 4 de julho de 2021. Após a missa, foi lida uma nota divulgada por instituições sociais, inclusive a CNBB, criticando a condução desastrosa do Governo Federal na pandemia. Foi o suficiente para que um homem, soltando fogo pelas ventas, tentasse parar a leitura, gritando que igreja não era lugar de política. Mais tarde, ele seria identificado como bolsonarista.

Um vídeo impressionante, do agressivo escândalo, caiu nas redes sociais. O comportamento medieval de ódio contrastava com o clima que se espera, de amor e respeito, dentro de um templo. Tempos de trevas, um grupo invadiu a sacristia com insultos ao padre Lino Allegri, 82 anos, ítalo-brasileiro responsável pela Paróquia da Paz.

A intolerância e a perseguição decretaram o afastamento do religioso de suas funções. Não por decisão da Arquidiocese de Fortaleza, mas por precaução. Alguém enviou ameaças anônimas, dizendo que estava monitorando o padre.

Não foi a primeira vez que religiosos são perseguidos nesta Terra de Santa Cruz. A história do Brasil é cheia de exemplos. Em 1757, os jesuítas criticaram a situação em que se encontravam. Para fazer média com Portugal, o Marquês de Pombal foi a Roma, em campanha antijesuítica. A Corte os expulsou daqui.

Dando um salto na história e chegando na ditadura militar iniciada em 1964, dom Hélder Câmara era chamado de padre vermelho e só não foi defenestrado por ser famoso no mundo todo. Seu trabalho em defesa de uma igreja progressista incomodava o regime. Ele apoiava os perseguidos políticos e o Serviço Nacional de Informações (SNI) estava sempre de olho no Dom da Paz.

Na década de 1980, rezava-se missa pela passagem da Independência do Brasil, no dia 7 de setembro. O padre Vito Miracapillo, hoje com 71 anos, se recusou a fazer a celebração, em Ribeirão (PE). “Por vários motivos, entre os quais a não efetiva independência do povo, reduzido à condição de pedinte e desamparado em seus direitos”, disse. O padre foi banido do Brasil em 31 de outubro de 1980 e mandado de volta para o seu país, a Itália.

Hoje, na periferia de São Paulo, padre Julio Lancelotti é chamado de comunista e sofre ameaças porque trabalha em favor povo em situação de rua, seguindo as diretrizes da Teologia da Libertação. O fato é que todo religioso que tem discurso e comportamento críticos é tido como dissidente e desorientador dos fiéis. Por ignorância semântica, também são chamados de comunistas.

Quem está no controle político muitas vezes acha que detém a hegemonia divina. E contraditoriamente cria uma espécie de religião política, tipo uma doutrina presente na instituição política, que adéqua o mundo aos seus propósitos. Quem não corresponde a esses interesses, automaticamente é visto como desafiador, e o destino é o “paredón” ideológico.

Esses poderosos, hoje no Planalto Central, esquecem que Jesus de Nazaré propôs um discurso crítico e político. Ao proclamar o Reino dos Céus, Ele já estava fazendo uma análise filosófica do poder vigente. Todo reino, como se sabe, é uma instituição social. A adjetivação “dos céus” significava que esse reino seria justo e igualitário, diferente daquele onde as pessoas sofriam.

O Reino dos Céus seria inaugurado ali mesmo e já. Comunidade feliz, concreta e plena, em lugar da sociedade oprimida, debaixo daquele sol escaldante da Palestina. E Jesus não era comunista, não queria o tomar o poder, nem nada. [Ilustração: Fernando Goya]

*Jornalista, escritor. Membro da Academia Pernambucana de Letras

Veja: Nas redes, sim; mas sem fake news https://bit.ly/2CWRmy4

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