Ouvi o galo
cantar, mas não sei onde
Ronaldo Correia
de Brito
Escutamos um galo nos arredores
do prédio onde moro, em Casa Amarela. Estranhei um galo cocoricando no
barulhento Recife, e não apenas no correr da madrugada, também durante o dia.
Ocupamos um décimo primeiro andar, é comum sermos acordados pelos passarinhos,
gorjeando na copa das árvores. Até sabiá do peito branco eu já vi pousado num
jambeiro. Mas galo… A cozinheira jura que o canto é mecânico, como o toque
falso dos sinos das igrejas.
“Há muito calaram sinos,
Pois não há quem os tanger.
Nem meninas nem meninos
Tangem sinos em seu ser:
Calaram os sinos do mundo
E eu sinto a alma doer.”*1
Percorri a vizinhança,
investigando de quem era o galo. Aconselharam-me a não fazer isso, podiam
imaginar-me um fiscal do Ibama. Sentei-me quieto. Até os dezesseis anos, vivi
nas fazendas dos meus pais, da avó materna, de tios e amigos da família, todas
com currais de gado e poleiros de aves em volta das casas. Era um conforto
acordar nas madrugadas, escutando cantos, balidos e chocalhos. Afirmam que nada
de ruim acontece, todos os perigos vão embora quando um galo canta ou um boi
muge. Confiante nessa crença, eu dormia tranquilo.
Minha filha confessou a mesma
sensação de aconchego. Durante trinta anos moramos em casa com quintal, jardins
e árvores, parecendo sítio. Um amigo que transformara sua chácara numa arca de
Noé, presenteou a família com um galo e seis galinhas de raça polonesa.
Presente de grego. Às pressas, construímos galinheiro e instalamos as aves
esquisitas, meio cegas porque as penas da cabeça caíam sobre os olhos. Alegria
para as crianças. De madrugada, o galo cinza e poligâmico, que conhecia a
aritmética de subir no poleiro e ficar com três companheiras de cada lado,
começava sua cantoria. Minha filha perdeu os receios de dormir sozinha, o cocoricó
era um véu mágico a protegê-la.
Abri mão de descobrir onde o
galo canta, prefiro deleitar-me com sua voz. Na feira de Casa Amarela, um
verdureiro me disse criar sete canários da terra, em gaiolas. Gosta do
chilreado dos pássaros. Mas por que sete?, perguntei curioso. Porque é a conta
do mentiroso. Um cunhado trouxe-os de Goiás, aqui eles já não existem. Meu
irmão mais velho contribuiu para o extermínio dos canários. Desde pequeno
criava-os para brigar. Chegou a ser preso numa rinha. O instinto perverso não
ficava por aí. Se os pássaros perdiam as brigas, ele furava os olhos ou os
depenava e depois os largava soltos, sem chances de sobrevivência.
Nos primórdios da colonização
cearense, às margens do rio Jaguaribe, no sertão onde eu nasci, havia um número
incalculável de periquitos, ararinhas azuis – essas que foram extintas –,
maracanãs, papagaios e outras espécies da mesma família. Os poderosos criadores
de rebanhos, proprietários de grandes extensões de terra – sempre eles – e os
senhores da “lei” determinaram que todos os habitantes matassem um certo número
de periquitos anualmente, e apresentassem as cabeças ao procurador, que delas
daria recibo para abatimento de multa financeira. Segundo eles, os pássaros
comiam as plantações de feijão e milho, que alimentavam as famílias brancas e o
seu gado.
Matança semelhante à dos índios
Jucás, Inhamuns, Jenipapos, Cariús, Cariris e várias outras tribos. Nertan
Macedo registrou que “Em 1708 – no sertão do Jaguaribe – os índios estavam
desesperados. Não queriam habitar as aldeias missionárias, expulsos que foram
das suas terras. Rebelaram-se contra os colonos. Arrasaram fazendas. Trucidavam
quem encontrassem. Nesse mesmo ano o governador de Pernambuco deu ordem ao
capitão-mor do Ceará para que movesse guerra de extermínio aos índios. O que
foi, efetivamente, feito.”
Igual massacre sofreram os
Caetés, na chegada de Duarte Coelho à Feitoria de Pernambuco, em 1535. A
expedição desembarcou às margens do Canal de Santa Cruz e avançou até a foz do
Canal de Igarassu. Ali, fundou uma povoação e travou luta com os índios.
Garantem que Duarte Coelho agiu da mesma maneira que Pedro Álvares Cabral,
nosso descobridor. Cabral deu ordens à armada, com a qual chegara às Índias,
para destruir Calecute e seus habitantes. Foi uma carnificina. Dos navios,
Duarte Coelho e os seus homens bombardearam a aldeia dos Caetés, situada num
monte onde ele mandou construir a Igreja dos Santos Cosme e Damião, a primeira
do Brasil.
“Em torno de mim matanças
Despertam o sangue enjaulado,
O gume calmo dos ossos
E a paz de um homem calado:
Serei então lei e rei
De um país desenganado.”*2
Acontece o extermínio de várias
formas, por todos os lados, sempre. Relataram-me que nos arredores de
Petrolina, num sítio às margens do São Francisco, sobrevive uma pequena reserva
de caatinga. No meio dela, alguns tipos de gato do mato – jaguatirica, maracajá,
pequeno, grande, palheiro, mourisco, suçuarana, pintada. Digo os nomes mas não
tenho a certeza dos tipos que ainda moram. Fica o dito. E a notícia de que os
proprietários de terras matam os gatos porque eles comem as galinhas e talvez
algum galo, cantor das madrugadas, afugentador de medos.
Morrem milhões de seres vivos
no incêndio da Austrália. Número superior nas terras amazônicas e do Pantanal.
E também índios e gentes. À direita e à esquerda vão caindo árvores, pássaros,
peixes, as espécies em que se inclui o desvairado homem. À direita e à esquerda
há ordens para a destruição. Pelo fogo da Amazônia, no atual desgoverno. Pela
barragem das águas no Belo Monte da Amazônia, no governo anterior. À direita e
à esquerda tombam os seres vivos, igualmente tombaram os Mourões de Gerardo
Mello: descalços, maltrapilhos, pobres, de farda de gala, botões de ouro e
patente de capitão, hierárquicos e cronológicos.
Todos tombarão, agora ou noutro
dia qualquer.
E, talvez, reste apenas o canto
mecânico de um galo ou rouxinol, como na história do dinamarquês Andersen.
*1*2 Ângelo Monteiro, Armorial
de um caçador de nuvens
.
Tema
político, veja: Quem avisa que vai melar o jogo com tanta antecedência bom
sujeito não é https://bit.ly/2TUCwlA
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