Xadrez para entender a história do cabo das
vacinas
No
final da ópera, a CPI da Covid tem agora nas mãos o mais trapalhão processo de
corrupção da história, quatro grupos se digladiando, cada qual querendo tirar
sua casquinha - os Miranda, os Bolsonaro-Senah, o esquema Barros e os coronéis
de Pazuello.
Luis Nassif, Jornal GGN
O dia
de ontem terminou com a mídia, em geral, em franca confusão a respeito do caso
do cabo da Polícia Militar Luiz Paulo Dominguetti, que se apresentou no
Ministério da Saúde oferecendo 400 milhões de vacinas da Astra Zeneca. Dizia
representar a distribuidora americana, Davati Medical Supply.
Parece impossível qualquer relato que
coloque lógica nessa loucura:
Peça 1 – os antecedentes
O
presidente Jair Bolsonaro é denunciado pelo deputado Luiz Miranda, seu antigo
apoiador, acusado de não ter tomado providências em relação a denúncias de
irregularidades na compra de vacinas. Segundo Miranda, Bolsonaro teria
manifestado seu descontentamento com Ricardo Barros, líder do governo, e pessoa
que indicou o principal suspeito, o diretor de Logística do Ministério. Mas não
tomou nenhuma atitude.
Miranda
denuncia o caso para a mídia. Nos dias seguintes aumenta a fervura do caso e
Ricardo Barros entra na linha de fogo.
Peça 2 – o cabo que vendia vacinas
De
repente, aparece o cabo Dominguetti, da Polícia Militar de Minas Gerais, em uma
sucessão de episódios de aparente falta de nexo – mas que têm uma lógica que
será contada ao longo dessa matéria.
1.
Um PM que não consegue sequer pagar o aluguel, com um salário de R$ 7.500,
procura o alto comando do Ministério da Saúde oferecendo 400 milhões de doses
da vacina Astra Zeneca. Já é estranho. O preço de US$ 3,00 por vacina é mais
estranho ainda.
2. Mesmo assim, é recebido pelo alto
comando do Ministério da Saúde em um almoço em Brasília. Lá, teria sido feita
uma proposta de propina de um dólar por cada vacina oferecida. Ou seja, os
membros da Saúde acreditavam na proposta. Então, qual o trunfo do cabo da
polícia?
3.
O cabo rejeita a proposta de propina e sai da reunião. Qual o seu trunfo para
rejeitar algo que poderia resolver sua vida para sempre? Obviamente a percepção
de que tinha um trunfo maior nas mãos.
4.
Tempos depois dá uma entrevista à Folha denunciando o pedido de propina. Antes
que a informação fosse apurada, é sumariamente demitido o diretor de logística
do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, indicado pelo líder do governo
Ricardo Barros, uma medida de interesse dos Bolsonaro. Como pode cair um
diretor com base em uma denúncia de difícil verossimilhança?
5.
O cabo é convocado pela CPI e, durante seu depoimento, apresenta um áudio de
conversa do deputado Luiz Miranda com o representante da Davati Medical Supply,
tentando desqualificar Miranda. Depois, se descobre que era um áudio falso, de
uma conversa antiga, anterior às vacinas.
Peça 3 – as redes sociais e a universalização
dos golpes
Os
jornalistas mais antigos – como eu – lembram-se bem dos golpes periódicos que
sacudiam os incautos, em torno de pirâmides. Teve a pirâmide das cartelas de
ouro, do boi gordo, da avestruz. Bem antes, a pirâmide dos sapatos de Franca,
dos LPs.
Gordo, Avestruz e tudo o que aparecia.
Quando
surgiu a Telexfree, o quadro clareou. Há no país grupos de golpistas que se
conhecem e periodicamente se juntam para determinados golpes, atuando como
franquias dos golpistas.
Com
a Internet e as redes sociais, esse modelo tornou-se muito ágil. O episódio
Telexfree, por exemplo mostrou uma rede internacional de franqueados, que
atuaram contra brasileiros nos Estados Unidos, Franca e Portugal.
Em
geral, os estudos de segurança focam as grandes quadrilhas de drogas. Deve ter
algum estudo sobre as redes de punguistas eletrônicos, mas não conheço.
É
em cima dessa rede que se organiza a tal Davati Medical Supply. Trata-se de uma
distribuidora do Texas de propriedade de um tal Herman Cardenas.
Seu jogo consistia no seguinte:
1.
Identificava parceiros em países, capazes de vender para governos federais ou
municipais ou para grupos específicos.
2.
O intermediário se apresentava como seu representante e conseguia cartas de
intenção dos compradores.
Há
duas hipóteses sobre o que fazia com as cartas de intenção. O mais provável é
que juntasse os pedidos e, com base neles, convencesse alguma fabricante de
terceira linha a fornecer vacinas.
Em
fevereiro, tentou aplicar esse golpe no Canadá – conforme
mostramos dias atrás. Procuraram vender vacinas da Astra Zeneca para a
Federação das Nações Soberanas do Canadá, por US$ 21 milhões. Houve alertas do
governo para o golpe.
Na ocasião, a CBS, rede americana de TV,
procurou Cardenas para que informasse onde conseguiria as vacinas. Respondeu de
forma dúbia, dizendo ter sido contatado por um intermediário oferecendo o
produto.
Peça 4 – a primeira abordagem no Brasil
No
Brasil, provavelmente a primeira tentativa da Davati com justamente com o
deputado Luiz Miranda. É o que se depreende do áudio divulgado pelo cabo
Dominguetti na CPI.
Fez
uma falsa denúncia – o áudio era de um período anterior ao das vacinas. Mas
cometeu uma revelação não captada pela CPI: o áudio era de uma conversa do
deputado Luiz Miranda com o representante comercial da Davati no Brasil. Na
conversa, falavam de vendas de produtos, não necessariamente de vacinas. Ou
seja, morando em Miami, Miranda percebeu um bom espaço no Ministério da Saúde,
onde já trabalhava seu irmão. Mas bateu nos dois esquemas pesados: o do diretor
ligado a Ricardo Barros e dos coronéis, ligados aos Bolsonaro.
Peça 5 – a segunda abordagem
Com
Luiz Miranda falhando, a Davati procura o segundo caminho, a Secretaria
Nacional de Assuntos Humanitários (Senah), uma organização do Distrito Federal,
presidida por um bispo, o reverendo Amilton Gomes, tendo como membro ilustre
Carlos Alberto Rodrigues Tabanez, de um clube de caça e tiro, especializado em
armas e que deu cursos para o grupo de militares que foi par ao Haiti –
comandados pelo general Augusto Heleno.
Ontem, a Agência
Pública divulgou reportagem minuciosa sobre as relações dessa Senah com os
Bolsonaro.
No dia 4 de março passado, o grupo foi
recebido no Ministério da Saúde, presentes o reverendo Gomes e o cabo da
polícia Dominguetti. O condutor do grupo foi um major da Força Aérea
Brasileira. Teria participado também o tenente-coronel Marcelo Branco, assessor
do DLOG na gestão de Roberto Dias.
Em resposta ao
Estadão, Cardenas, da Davati, afirmou que a inclusão de Dominguetti
foi exigência do próprio governo brasileiro.
Peça 6 – o vendedor que não tinha vacinas
Mas
como se concretizaria o golpe, se os supostos vendedores não tinham vacina para
entregar? Recorro a um expediente: a teoria do fato, através do qual monta-se
uma narrativa que permite encaixar todas as peças.
O
golpe já tinha sido preparado pela Medida Provisória no. 1.026, assinada em
janeiro por Bolsonaro e preparada pelo deputado Ricardo Barros. Foi o que
aguçou o apetite de harpias de vários naipes.
Conforme
levantamento da repórter Patricia Faerman, a MP previa os seguintes
pontos:
* Dispensava a compra de vacinas de
licitação, estendendo a possibilidade para a administração pública direta e
indireta.
*
Para a compra, dispensava o registro sanitário ou a necessidade de autorização
temporária de uso emergencial.
*
Permitia o pagamento antecipado, “inclusive com a possibilidade de perda do
valor antecipado”, e trazia uma série de blindagens para os vendedores, como a
não penalização da empresa, em caso de não entrega, e a garantia de
confidencialidade do contrato.
*
Permitia as vendas por empresas sem habilitação jurídica, facilitando a vida da
Precisa, empresa envolvida em vários rolos na gestão da Ricardo Barros na
Saúde.
*
Possibilidade de cobrar mais pelas vacinas do que as estimativas do contrato.
* Permite a apresentação de termos de
referência simplificados, evitando questionamentos maiores sobre a qualidade do
produto.
Enfim,
tudo preparado para o golpe, garantindo de antemão o pagamento antecipado e a
não punição do vendedor, em caso de não entrega do produto. Tudo isso
justificado pela carência de vacinas, situação provocada pelos sucessivos
atrasos no fechamento de contratos de compra.
Peça 7 – o desfecho da ópera bufa
Juntando
todas essas peças, fica claro o jogo:
1.
Quando o vale-tudo é instaurado, desperta a cobiça de vários grupos. O primeiro
procurado pela Davati foi Miranda, que já mantinha negócios com ela.
2. Ao mesmo tempo, desperta a cobiça de
dois grupos ancorados na Saúde: do esquema Ricardo Barros, dominante na Saúde e
dos coronéis levados pelo general Pazuello.
3.
Miranda não consegue penetrar na estrutura da Saúde e denuncia o caso para
Bolsonaro, que não toma nenhuma atitude.
3.
Ao mesmo tempo, avança o esquema do tal reverendo Amilton, provavelmente ligado
a Flávio Bolsonaro. Mas esbarra também no esquema de Ricardo Barros na Saúde e
na fome de militares incrustados na máquina por Pazuello. Ou seja, dois grupos
de fora, ligados ao bolsonarismo, que tem que adoçar a mão do grupo de dentro.
4.
Miranda bota, então, a boca no trombone, criando uma situação política delicada
para Bolsonaro, que provavelmente já estava irritado com Roberto Dias, o
diretor de logística ligado a Barros. O deputado Barros entra na linha de fogo
da mídia e do Ministério Público.
5.
Provavelmente, aí, os bolsonaristas perceberam que poderiam matar dois coelhos
com uma só cajadada. E convocam o intrépido cabo Dominguetti. Primeiro, ele
denuncia a tal propina para a Folha e é convocado para a CPI. Antes mesmo que a
denúncia fosse apurada, demite-se o homem de Barros na Saúde.
Na CPI, Dominguetti tenta derrubar o
segundo pino, o deputado Miranda, com a tal gravação. É desmentido, mas ajuda a
mostrar os contatos de Miranda com a Davati,
No
final da ópera, a CPI da Covid tem agora nas mãos o mais trapalhão processo de
corrupção da história, quatro grupos se digladiando, cada qual querendo tirar
sua casquinha – os Miranda, os Bolsonaro-Senah, o esquema Barros e os coronéis
de Pazuello.
Para
encerrar a ópera, apagam-se as luzes do teatro e coloca-se no ar as orações de
Onix Lorenzoni pregando a honestidade absoluta do governo.
E
o bravo cabo Dominguetti? Não acontecerá nada com ele. Ele praticou o chamado
“crime impossível”. Ou seja, não havia a menor possibilidade de cometer o crime
porque jamais teria a vacina para oferecer.
Além
disso, o estelionato é um crime de duas mãos – que presume que a outra parte
também quer levar vantagens. Por exemplo, quando alguém oferece um bilhete
premiado para outra pessoa, alegando necessidade. Quem vendeu praticou o
estelionato; quem comprou, procurou tirar vantagem.
Por isso, o cabo
Dominguetti poderá sair ileso do episódio. Afinal, é apenas um bagrinho em um
mar coalhado de tubarões.
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Veja: Até onde irá o governo Bolsonaro? https://bit.ly/3h5e6xJ
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