24 outubro 2022

Biologia molecular

Bioética, cadê você?

Nas últimas décadas, a biologia molecular abriu perspectivas vertiginosas: agora é possível modificar a genética de um embrião, de modo a corrigi-la para seu próprio bem, explicam certos pesquisadores, mas correndo o risco de alimentar um mercado de humanos sob medida, retrucam outros. Como informar a população e impor limites a essas práticas?
Jacques Testart, Le Monde Diplomatic

 

Há alguns anos existem perspectivas para selecionar o óvulo do qual os filhos vão ser gerados. Em 2016, no Japão, células da pele de ratos “reprogramadas” puderam ser transformadas em gametas, que geraram embriões viáveis na origem de ratos férteis.1 Aplicada à nossa espécie, essa tecnologia poderia revolucionar a prática do diagnóstico genético pré-implantacional (DGPI), gerando uma profusão de embriões, uma vez que as células da pele constituem um recurso ilimitado. Se dispusermos de uma grande quantidade de embriões, a possibilidade de selecionar aqueles que têm determinadas características aumenta de forma considerável. Uma evolução como essa abriria o caminho para uma remodelagem genética da espécie daqui a poucas gerações.

Diante desse risco antropológico, seria possível imaginar que as autoridades políticas e éticas mundiais reagiriam como o fizeram em 1996, após a reação midiática em massa relativa ao primeiro mamífero clonado, a ovelha Dolly, justificando a proibição de qualquer pesquisa sobre “clonagem” na espécie humana. Muito pelo contrário, na França, a lei de bioética de 2 de agosto de 2021 autoriza, desde então, a criação de embriões transgênicos e estimula a produção de gametas humanos in vitro (artigos 20 e 21) e, ao mesmo tempo, a criação de combinações humano-animal.

Essa oportunidade dada pela legislação para criar o humano geneticamente modificado reflete o temor de ficar a reboque numa área em que diversos países já superaram essa etapa – uma consideração econômica sem muita relação com a ética. Como foi possível constatarmos ao longo de todo o processo “democrático” de revisão da lei, desde as consultas públicas sobre a bioética, em 2018, até os debates parlamentares, os especialistas escolhidos para informar a população ou os que a representam no Parlamento raramente se expõem a uma argumentação contraditória e aplicam sua verdade como algo indiscutível, já que ditada pela ciência. Alguns se mostram extraordinariamente ativos. O Grupo Europeu de Ética, encarregado de aconselhar a Comissão Europeia sobre as questões morais, organizou em Bruxelas uma mesa-redonda, em 16 de outubro de 2019, sobre a “edição genética” de plantas, animais e… seres humanos, um programa que reduziu as questões éticas fundamentalmente à técnica. Entre os debatedores, estava o neurobiologista francês Hervé Chneiweiss, que acumula várias funções importantes: presidente do Comitê de Ética do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm), membro do Comitê Consultivo Nacional de Ética (CCNE), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Comitê de Especialistas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e, finalmente, fundador da Associação para a Pesquisa Responsável e a Inovação na Edição Genômica (Arrige), uma organização internacional que defende a legalização das modificações do genoma humano e que tem entre seus membros a Associação Francófona Transumanista. “Intervir no genoma dos embriões é indispensável”, explicou em 2019.2 Chneiweiss compartilha com Pierre Jouannet, ex-presidente da Federação Francesa dos Centros de Estudo e de Conservação do Óvulo e do Esperma (Cecos) e membro da Academia Nacional de Medicina, essa visão da humanidade que deixa pouco espaço para o sentimentalismo humanista no Comitê de Ética do Inserm, no qual ele também exerce uma função: as modificações feitas no embrião constituiriam “cuidados”, de modo que esse embrião, considerado um paciente, “se beneficiaria” de sua transformação em criança.

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Opiniões enterradas sob o desprezo

Logo após o encerramento dos debates sobre a lei de 2021, essas eminências, que já tinham conseguido quase tudo, voltaram a insistir para ampliar o diagnóstico pré-implantacional, de modo a ir além da detecção de mutações herdadas, aquelas conduzidas pelos genitores, e pesquisar acidentes cromossômicos ocasionais (ou aneuploidias),3 o que significaria submeter ao crivo genético todos os embriões resultantes de fecundação in vitro. Já o CCNE emitiu, em seu comunicado n. 129, de 2018, propostas audaciosas para melhorar a qualidade da humanidade. Em primeiro lugar, ele perguntou: por que não seriam criados embriões humanos com objetivos exclusivos de pesquisa, como já fazem os britânicos? Na realidade, “a questão poderia ser colocada como uma exceção eventual a essa proibição” de acordo com um “imperativo de finalidade” médica. Esse imperativo reivindicado aqui lembra a justificativa por autoridades industriais de um princípio de inovação destinado a retirar da empresa o princípio de precaução, acusado de entravar suas atividades. Portanto, propõe o CCNE, convém intensificar as pesquisas sobre esses embriões humanos geneticamente modificados e, ao mesmo tempo, se opor no atual momento à sua transferência para o útero humano, uma precaução já ultrapassada, como vimos, pelo Comitê de Ética do Inserm. Cada qual no seu papel: alguns demandam a permissividade bioética extrema, outros moderam seus desenvolvimentos. Mas todos escamoteiam a questão central: a seleção genética generalizada ou a regulagem precisa da técnica de modificação hereditária das pessoas. Essa questão deveria enfocar a reflexão dos responsáveis pelas decisões e, antes deles, com urgência, a da população. Mas será que acostumar-se com as promessas dos aprendizes de feiticeiro não seria um primeiro passo indispensável para sua aceitação?

Em 2018, o Comitê Consultivo Nacional de Ética organizou consultas públicas sobre a bioética, a fim de permitir que os cidadãos se manifestassem acerca da revisão da lei. Curiosamente, a modificação genética do embrião humano não foi discutida, enquanto as principais instituições que trabalham com a bioética propõem pesquisas nesse sentido (Agência de Biomedicina, Gabinete Parlamentar de Avaliação das Escolhas Científicas e Tecnológicas, Academia de Ciências, Academia de Medicina, Academia de Tecnologias, Comitê de Ética do Inserm etc.). Os condutores oficiais da bioética zelam para que não sejam expostas à população temáticas que já foram objeto de escolhas estratégicas. Em suma, o CCNE teria sido fundado para organizar esses debates particulares de avaliação técnica contraditória, mesmo que ele sustente firmes propostas sobre o assunto?

As consultas públicas sobre a bioética escapam também da democracia quando opiniões expressas com clareza por parlamentares são enterradas sob o desprezo. Por ocasião da revisão anterior da lei, em 2011, essas consultas públicas incluíram diversas “conferências de cidadãos”, uma delas sobre o embrião e o diagnóstico genético pré-implantacional. O painel apresentado por cidadãos demandou que, cada vez que se fizer um diagnóstico pré-implantacional, a pesquisa realizada se limite a uma única característica genética, de modo a bloquear a extensão da triagem de futuras pessoas em função de novos saberes genéticos. A missão da informação parlamentar sobre a revisão de leis (jan. 2010) menciona essa conclusão sem, no entanto, colocá-la em discussão no Parlamento, anulando assim uma oportunidade de apresentar uma barreira eficaz.

Personalidades influentes ligadas a instituições legítimas que agem de acordo com organizações profissionais de médicos, biólogos, pesquisadores e que cortejam start-ups ou industriais… todos constituem um grupo de pressão coerente. Há doze anos, dois importantes atores da bioética denunciam o “biopoder” da Agência de Biomedicina, que eles definem como “um dispositivo biopolítico multiforme e tentacular, extremamente bem organizado, com suas antenas hexagonais, seus representantes prontos para desembarcar em reuniões de ética sem terem sido convidados”. E completam: “Chegam até a impedir que conferencistas se expressem em congressos internacionais quando pressentem que sua ideologia está em perigo”.4

Sem dúvida, esse biopoder não nega a existência de alguns riscos, mas com o objetivo de rapidamente garantir que sejam “controlados” – de preferência pela Agência de Biomedicina, mais do que pela lei. No que diz respeito aos riscos éticos, encontram-se afogados em uma verborragia orwelliana, como na recente recomendação do CCNE, que quer suprimir o termo “eugenismo” para escamotear os debates sobre a finalidade de práticas que sustenta.5 No entanto, não especialistas compreendem muito bem as disputas antropológicas do dossiê, tais como os do movimento Faucheurs Volontaires: em uma carta aberta aos senadores a propósito da lei bioética a ser sancionada, esses opositores às plantas transgênicas reivindicaram, em novembro de 2020, “uma reflexão que deve preceder os desenvolvimentos tecnológicos, e não o contrário”. E eles perguntam: “Será possível basear uma sociedade humana na transgressão perpétua por meio da técnica dos limites éticos?”

Organizado anualmente em Paris, o Salon Désir d’Enfant promove serviços acessíveis no exterior, mas ainda proibidos na França, onde o mercado de procriação assistida, já considerável, só pode prosperar quando uma nova tecnologia se torna comercializável. O desenvolvimento do mercado de células-tronco de interesse médico e farmacêutico explica a liberação da pesquisa sobre as células-tronco embrionárias pela última lei de bioética, que substitui as demandas de autorização por um regime declarativo simplificado junto à Agência de Biomedicina.

As perspectivas abertas pelas “tesouras genéticas”, como a do tipo Crispr-Cas96 favoreceram o desenvolvimento de um turismo médico, no qual o dinheiro reina como uma autoridade, e contribuíram para estender a estrutura do biopoder à escala internacional, reunindo os atores da edição do genoma dos principais países ocidentais. Se é possível se alegrar com as intervenções da OMS para que a bioética decida, enfim, o que é lícito e o que é proibido em escala internacional, a agência acompanha mais do que precede essas evoluções, como testemunham suas “Recomendações sobre a edição do genoma humano para o progresso da saúde pública” (comunicado na imprensa do dia 12 de julho de 2021). Alguns meses antes (19 mar. 2021), o Grupo Europeu de Ética publicou um documento, em Bruxelas, sobre o mesmo tema (“Ética da edição genômica”), dirigido aos europeus, desdenhando um grande número de publicações científicas que documentam a ausência de controle dessas tecnologias e apontando os males irreversíveis que elas poderiam causar ao genoma.7

 

Uma questão de limite

Fato marcante, a bioética é uma das raras áreas em que os lobbies defendem com mais frequência ideologias do que interesses econômicos – mesmo que alguns pesquisadores e industriais se dediquem de corpo e alma a promover suas atividades. Nesse caso, a subjetividade também prevalece sobre o mercantilismo organizado. A situação se mostra, então, propícia a procedimentos que implicam uma verdadeira deliberação com a população. De que forma? Por meio de convenções cidadãs, por exemplo, desde que a organização respeite estritamente um protocolo honesto e racional8 e, em seguida, leve a sério as escolhas expressas – o que, como vimos na Convenção Cidadã sobre o Clima, foi recentemente desprezado. Na verdade, o acúmulo de debates e de consultas cria apenas uma ilusão democrática, levando a crer que uma solução “justa” poderia resultar da revelação dos interesses, das convicções, das impressões e das esperanças da população. E os parlamentares parecem acreditar que estão liberados de suas obrigações enquanto representantes do povo, uma vez que organizaram procedimentos para definir sua opinião.

Comparada com o rigor dos mercados, uma ética à francesa foi relegada a último plano político e midiático. Considerada obsoleta, pois se baseia em princípios de não mercantilização do corpo humano (dignidade, respeito à integridade da pessoa, consentimento, não patrimonialista…), ela foi substituída por ideais tidos como “modernos” em razão de serem livres da noção de limite ou proibição. Como se nada devesse permitir recusar tudo o que se pode fazer, de acordo com uma ideologia de força ilimitada da qual o transumanismo se apropriou. A questão de que deveria se ocupar a bioética não é a dos pequenos passos, quase sempre justificáveis porque têm a evidência do bom senso, mas a do limite: não há uma verdadeira construção ética se toda mudança consistir em uma permissividade progressiva e infinita por meio do acréscimo de novas exceções ao que antes se apresentava como uma regra.

 

*Jacques Testart é biólogo da procriação e diretor honorário de pesquisas do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (Inserm), na França.

 

1 Ler “Dernier pas vers la sélection humaine” [Último passo para a seleção humana], Le Monde Diplomatique, jul. 2017.

2 “Loi de bioéthique: intervenir sur le génome des embryons est indispensable” [Lei de bioética: intervir no genoma dos embriões é indispensável], Sciences et Avenir, Paris, maio 2019.

3 Pierre Jouannet e Israël Nisand, Note du comité d’éthique de l’Inserm [Nota do Comitê de Ética do Inserm], jun. 2021.

4 Emmanuel Hirsch e Pierre-Yves Le Coz: “L’agence de la biomédecine: menace d’un biopouvoir en France” [A Agência de Biomedicina: ameaça de um biopoder na França], Le Quotidien du Médecin, Malakoff, 16 nov. 2010.

5 Jacques Testart, “La quête de pureté. Critique des diagnostics génétiques” [A busca pela pureza. Crítica de diagnósticos genéticos], Esprit, Paris, jul.-ag 2022.

6 Ler, de Bruno Canard, Étienne Decroly e Jacques van Helden, “Les apprentis sorciers du génome” [Os aprendizes de feiticeiro do genoma], Le Monde Diplomatique, fev. 2022.

7 S. Papathanasiou et al., “Whole chromosome loss and genomic instability in mouse embryos after CRISPR-Cas9 genome editing” [Perda total de cromossomos e instabilidade genômica em embriões de ratos após edição de genoma CRISPR-Cas9], Nature Communications, 12-5855, Londres, 2021.

8 “Comprendre les conventions de citoyens” [Compreender as convenções cidadãs], Sciences Citoyennes, Paris, 5 abr. 2018. Disponível em: https://sciencescitoyennes.org.

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