07 abril 2012

"Mãe e filha" na visão de Ronaldo

A aposta corajosa de Petrus Cariry
Ronaldo Correia de Brito

Publicado no Terra Magazine


Não sei se muitas pessoas em Fortaleza viram o filme Mãe e Filha. Dizem que os cearenses do litoral só apreciam o humor escrachado - o que se tornou um estereótipo lamentável -, e o comovente filme de Petrus Cariry é o oposto de uma piada grosseira.

Nosso historiador mais famoso, Capistrano de Abreu, cobrava dos estudiosos que adentrassem o Brasil profundo, que deixassem a costa atlântica e se embrenhassem pelo sertão, em busca de outra realidade. Petrus viajou até as ruínas sertanejas do Cococi e deparou-se com uma metáfora que nos comunica no seu filme: só é possível uma saída, a reintegração à mitologia.

O enredo de Mãe e Filha é bem simples: Maria de Fátima retorna de Fortaleza para o lugar onde nascera, o Cococi, trazendo uma mochila de carregar às costas e uma caixa de papelão. Faz o primeiro percurso na carroceria de uma camioneta e o restante a pé. Num trecho da caminhada, dois símbolos do mundo que deixa para trás são apresentados: o celular fora de área e uma moto em velocidade. Na vila em ruínas, a única moradora é a Mãe, esperando o retorno do marido que partiu há anos e da filha, que também a abandonou em busca da capital. A Mãe acredita que é possível restaurar o tempo e as ruínas com a chegada dos que partiram e com o nascimento de um neto.

Maria de Fátima traz um filho para entregar à Mãe, porém ele está morto dentro da caixa de papelão que carrega. O motivo da visita é pedir à velha senhora que o enterre. O conflito se estabelece na oposição entre o desejo da filha sepultar o seu morto, permitindo que descanse, e a vontade da Mãe em mantê-lo como se fosse uma criança viva.

O diretor opta por uma narrativa lenta, angustiante e opressiva, reforçada pela fotografia quase sempre escura, com focos em detalhes de paredes, imagens abstratas que dialogam com o cinema do russo Andrei Tarkovski. A mesma obsessão pelo tema da fragmentação de Deus povoa o filme de Petrus Cariry, representada em várias imagens, a mais eloquente delas a de uma igrejinha arruinada, com pedaços de santos, que Maria de Fátima tenta recompor no túmulo do filho. São fotografias eloquentes, fortes, que remetem ao pensamento de Hermann Broch sobre a desintegração do mundo, a dissolução dos valores religiosos e a perda da crença em Deus.

Talvez a parábola mais bela desse filme corajoso seja a dos quatro anjos vaqueiros, fantasmas que rondam a casa, a vila, o sertão e o mundo arruinado, tentando preservá-lo no que resta, antes do derradeiro estertor. São anjos vingativos, semelhantes aos dos desertos bíblicos. No mundo fantasmagórico de Mãe e Filha, onde bois e vacas surgem do nada e o tempo se marca na roda de um cata-vento, a filha busca a fuga, a Mãe e o restabelecimento de uma ordem absoluta. E os anjos guardiões vaqueiros impedem qualquer saída para a pós-modernidade que recuse o mito.

Conheci Petrus Cariry ainda adolescente, às voltas com a montagem de um documentário que me impressionou. Nunca mais nos encontramos. Reconheço em Mãe e Filha uma estética, um conhecimento e uma ética que eu também buscava no filme Lua Cambará, a versão de 1975, filmada toscamente em super 8. Alegra-me que Petrus tenha continuado a tradição do pai, o cineasta Rosemberg Cariry, depurando-a e criando a própria assinatura, que mantenha a parceria com Firmino Holanda. Essas confrarias de artistas lembram as famílias de músicos, artesãos e brincantes, tão frequentes no Ceará e tão produtivas.

Há belas metáforas nesse filme enlutado, que trata a morte na perspectiva de uma possível ressurreição. Há acertos como a música de Henry Purcell - Música para o funeral da Rainha Mary, que já foi trilha de Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick -, usada com economia e efeito. Há apostas de risco, como o uso da imagem de Ophelia, do pintor pré-rafaelita John Millais, ilustrando a morte inocente. Má há, sobretudo, uma coragem desmedida do jovem diretor em criar um filme na contramão do cinema brasileiro comercial, televisivo, raso e panfletário.
Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca, Livro dos Homens, Galiléia e Retratos Imorais.

Nenhum comentário: