Cidadania distorcida
Luciano Siqueira
O jovem casal chama a atenção pela agilidade com que transita entre as gôndolas do supermercado de vias estreitas e muitos carrinhos em circulação.
Luciano Siqueira
O jovem casal chama a atenção pela agilidade com que transita entre as gôndolas do supermercado de vias estreitas e muitos carrinhos em circulação.
Eu mesmo, que há décadas me especializei em empurrar o carrinho (e
depois dirigir nosso veículo com as compras), já que comprar propriamente não é
minha especialidade, sempre encontro dificuldade em contornar os que estacionam
justo na minha frente ou se aproximam em sentido contrário.
Aquele jovem casal se mostra hábil ao contornar obstáculos e se
posicionar onde deseja.
Quando me dirigi à fila do caixa preferencial — onde se lê a
relação dos "preferenciais": idosos, gestantes, mulheres com crianças
de braço e portadores de deficiência - já os encontrei em minha frente. Ele de
bermudas, óculos escuros, porte atlético, toda pinta de jovem saudável. Ela bem
vestida, esguia, jeitão de quem frequenta a academia e nenhum sinal de que seja
gestante.
Por que optam pelo caixa preferencial?
Obviamente, pela mesma razão que os levam a ocupar a vaga de
idosos ou gestantes no estacionamento, semelhante fila em bancos e assim por
diante. Puro comodismo.
Ariano Suassuna contava que, num banco, certa vez perguntou a um
cidadão à sua frente se estava grávido, já que não exibia nenhum sinal físico
que o credenciasse a usar a fila preferencial.
Tenho vontade de imitar Ariano e abordá-los. Mas me inibo. Pra que
começar o sábado brigando com desconhecidos?
E fico a imaginá-los jogando garrafa plástica ou saco de pipocas
pela janela do carro e que tais.
Mas no almoço da família aos domingos, não se privam de reclamar
que a cidade está suja... “Cadê a
prefeitura que não cuida!?”
Quantos milhões de habitantes deste país tropical têm o mesmo
comportamento?
É o exercício distorcido da cidadania, sob a inspiração da
concepção de que o Estado existe para a satisfação de interesses pessoais
privados e de que a Lei vale para todos, menos para si mesmo.
Apesar da guerra atual de Bolsonaro e seguidores para destruir a
educação “suspeita”, um dia chegaremos lá e seremos, sim, um povo civilizado.
Pode apostar.
[Ilustração: Josef Albers]
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