06 dezembro 2020

Paladino de quê mesmo?

Sergio Moro, a CIA e a devastação do Brasil

Por qualquer lógica formal básica, era evidente que Moro estava a serviço dos interesses dos EUA – e não do Brasil

Altair Freitas, Portal Vermelho

 

De tempos em tempos, a CIA – aquele órgão de espionagem mundial a serviço de Washington – produz relatórios traçando cenários futuros sobre economia, política e desdobramentos gerais para o mundo em geral e para os EUA em especial. Já tratei disso aqui algumas vezes, mas há elementos novos.

Esses relatórios não são estudos acadêmicos. São peças de inteligência que orientam as ações do Estado ianque para agir mundo afora e tentar garantir sua hegemonia conforme os interesses dos seus conglomerados privados e o aparato civil-militar, que, de fato, comandam aquele país, muito acima de quaisquer presidentes que são, na verdade, a ponta visível do iceberg oculto sob as águas turvas e fétidas do capitalismo espoliador dos trabalhadores locais e de povos inteiros para além das suas fronteiras. Com eles nas mãos, os demais serviços de inteligência, o Pentágono e a própria CIA, adotam as medidas necessárias para buscar manter seus conglomerados privados e corporações de imenso poder político-militar predominantes no mundo.

Os diversos relatórios produzidos entre 2006 e 2010 apontavam o Brasil como potência emergente, com empresas privadas e estatais alavancadas pela parceria com o Estado brasileiro comandado por Lula, entrando forte na disputa por mercados dentro e fora do Brasil, em concorrência direta com as corporações dos EUA e Europa. Três setores sobressaíam: energia, com o grande fortalecimento da Petrobrás; engenharia de construção (Odebrecht, OAS, Queiroz Galvão, Camargo Corrêa); e produção de proteína animal (JBS). As empresas não são nominadas, mas, nesses setores, eram essas as principais companhias na disputa palmo a palmo com os conglomerados privados estrangeiros.

Se olharmos com detalhes o que acontecia naquele período de grande crescimento da economia brasileira (chegamos à quinta posição em termos de PIB em alguns meses de 2011, primeiro ano do Governo Dilma!), os relatórios da CIA comprovavam cenários por ela projetados para a década seguinte (os anos 20 do nosso século): fortalecimento do Brasil como potência regional, com presença global em alguns setores e declínio acentuado dos EUA. A CIA não olhava só para o Brasil, claro, mas para o rápido ascenso chinês, a retomada da grandeza política e econômica da Rússia, a expansão da economia da Índia, o papel da Venezuela de Hugo Chávez no cenário petrolífero e político, etc.

Meu recorte aqui diz respeito aos nossos interesses nacionais – e como o Brasil foi brutalmente afetado pelo desmonte, desmoralização e quase extinção dos grupos e empresas citadas acima em função dos grandes escândalos de corrupção que levaram à queda do governo petista e seus aliados à esquerda. Em especial o papel da Operação Lava Jato para essa desmoralização, cujo real chefe foi o então juiz Sérgio Moro.

No campo das profundas disputas entre conglomerados nacionais e oligopólios estrangeiros, a guerra é suja, profunda. Envolve espionagem estatal e privada. Envolve também negociatas, cooptação e convencimento de agentes públicos para criar facilidades legais e financeiras, bem como o financiamento de golpes de Estado para derrubar governos hostis aos seus interesses, financiamento aberto e secreto para forças políticas afinadas com esses interesses. Tem sido assim no capitalismo desde seu processo histórico de desenvolvimento e muito mais intenso a partir do surgimento das chamadas transnacionais ou multinacionais. O crescimento dos conglomerados privados brasileiros seguiu esse velho roteiro – e, claro, o hegemonismo estadunidense não assistia a isso parado. Foi à guerra!

Poderia ficar aqui descrevendo por inúmeros parágrafos os movimentos internos e externos que conduziram o Brasil à crise profunda instalada desde 2013 – uma combinação de crise econômica global do capitalismo a partir de 2008 com as disputas políticas no Brasil entre os blocos liderados por PSDB e PT. Tudo isso resultou no impeachment de Dilma e na ascensão da extrema direita bolsonarista ao poder em 2018, na esteira do denuncismo anticorrupção promovido pela Lava Jato, em associação com a grande mídia capitaneada pela Rede Globo e demais atores políticos e sociais que agiram de caso pensado ou induzidos a erro pela avalanche denuncista.

Apenas a título de exemplo, quem não lembra os grampos promovidos pelos serviços de inteligência dos EUA contra a presidenta Dilma, uma violação criminosa da soberania nacional? Quem não se lembra das profundas manipulações das investigações da Lava Jato para levar Lula à prisão e tirá-lo da disputa eleitoral de 2018? Ou, ainda antes, das investigações sobre o “mensalão” e a prisão de figuras de proa do petismo? Isso tudo sempre esteve diretamente interligado aos interesses estratégicos acima identificados.

Como o espaço aqui é curto, atenho-me ao recentíssimo fato envolvendo o ex-juiz e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, Sergio Moro, o verdadeiro chefe da Lava Jato, como ficou amplamente comprovado pelas matérias do site The Intercept, através das matérias que ficaram conhecidas como Vaza Jato. Ao longo da Lava Jato, ficaram evidenciadas as articulações de Moro com órgãos de inteligência dos EUA, com seu Departamento de Estado, o que era confirmado por ele mesmo, inclusive sob o manto de “parceiras para troca de informações no combate à corrupção e lavagem de dinheiro”. Por qualquer lógica formal básica, era evidente que Moro estava a serviço dos interesses dos EUA – e não do Brasil –, mas tudo ficava encoberto pela aura de “Eliot Ness brasileiro” combatendo as “máfias e quadrilhas” que roubavam o País a serviço do PT.

Moro foi contratado como sócio-diretor pela multinacional estadunidense Alvarez & Marsal, especialista na recuperação judicial e financeira de grandes empresas. Do próprio site da A&M, extraio o seguinte trecho sobre tal contratação:

 

“Moro é especialista em liderar investigações anticorrupção complexas e de alto perfil, crimes de colarinho branco, lavagem de dinheiro e crime organizado, bem como aconselhar clientes sobre estratégia e conformidade regulatória proativa. Sua contratação reforça o time da A&M formado por ex-funcionários de governos, incluindo Steve Spiegelhalter (ex-promotor do Departamento de Justiça dos EUA), Bill Waldie (agente especial aposentado do FBI), Anita Alvarez (ex-procuradora do estado de Cook County, Chicago) e Robert DeCicco (ex-funcionário civil da Agência de Segurança Nacional), Paul Sharma (ex-vice-chefe da Autoridade de Regulação Prudencial do Reino Unido) e Suzanne Maughan (ex-líder investigativo da Divisão de Execução e Crime Financeiro da Autoridade de Conduta Financeira e investigador destacado para o Escritório de Fraudes).


Uma empresa estadunidense, recheada de ex-agentes públicos dos EUA, contrata como sócio o ex-juiz brasileiro para recuperar empresas que ele mesmo ajudou afundar, como Odebrecht, Queiroz Galvão, OAS e Set Brasil (setor petrolífero). Em especial as empreiteiras foram praticamente destruídas pela Lava Jato e seus espaços nos mercados foram ocupados por empresas estrangeiras. Na esteira desse desmonte de grandes empresas brasileiras em combinação com as crises econômica e política que devastaram o Brasil, o País despencou no seu PIB, o desemprego explodiu e a crise social voltou a ser parte do cotidiano.

Tudo isso é explicado ao povo como resultado da corrupção do PT e da esquerda que governou o Brasil entre 2003 e 2016. Volto então aos relatórios da CIA: tenho todos os motivos para compreender que a realidade é muito mais complexa do que o lixo podre midiático, jurídico e político vendido ao Brasil como verdade absoluta e inquestionável. É preciso questionar tudo, indo à essência dos fenômenos, saindo do conforto das aparências e das explicações simples – que são, na verdade, grandes cortinas de fumaça para não enxergarmos os grandes interesses e a guerra subterrânea pelo controle do Brasil.

[Ilustração: Aroeira]

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