País sem ciência é refém de
presente medíocre e futuro sem perspectiva
Mercedes Bustamante, portal Vermelho
Em artigo endossado pela Coalizão Ciência e Sociedade e
divulgado pela Agência Bori, a cientista Mercedes Bustamante (UnB) avalia os
prejuízos para o presente e o futuro do Brasil causados pela má gestão e o
desprezo pela educação e pela ciência nas esferas do Governo Bolsonaro
Em 2 de setembro de 2018, o Museu Nacional do Rio de Janeiro foi
devastado por um grande incêndio que consumiu, de forma irrecuperável, a maior
parte de um acervo inestimável. O museu, fundado em 1818, é a instituição
científica mais antiga do país e uma das mais importantes do mundo. Além da
perda da memória e de conhecimentos únicos, especialmente sobre a América
Latina, a devastação no Museu Nacional comprometeu a geração de novos
conhecimentos por meio da ciência.
A ciência é a prática que nos fornece as explicações mais confiáveis
sobre a natureza, nós mesmos, nossas sociedades, nossas construções físicas e
de pensamento por meio das variadas áreas do conhecimento. As ações e inações
que ao longo de anos deterioraram as condições do Museu Nacional até o trágico
2 de setembro de 2018 se repetem em instituições científicas país afora e se
acentuaram nos últimos três anos. O desprezo pela educação e pela ciência nas
esferas do poder federal, ancorado por discursos falaciosos e má gestão, foi
demonstrado de forma cabal na solicitação do Ministério da Economia ao Senado
Federal que resultou em novo corte de recursos para a ciência brasileira.
O setor já estava debilitado por manobras anteriores que impediram
acesso aos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (FNDCT). Os recursos do FNDCT, cuja destinação é claríssima pelo
próprio nome do Fundo, garantiriam a sobrevida de projetos e programas de
pesquisa e inovação, em particular o Edital Universal do CNPq que sustenta
todos os níveis do Sistema de Ciência e Tecnologia. Se o incêndio do Museu
Nacional consumiu nossa memória, a manobra do Ministério da Economia, encampada
pelo Senado, consome as nossas possibilidades de construir um país com base
numa economia do conhecimento.
Impossível avaliar a degradação do Sistema Nacional de Ciência e
Tecnologia sem também mencionar o desmonte da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), fundação vinculada ao Ministério da Educação
e responsável pela avaliação e fomento aos Programas de Pós-graduação no
Brasil. A maior parte da pesquisa científica no país é conduzida em
universidades públicas e no âmbito de programas de pós-graduação por
pesquisadores e alunos de mestrado e doutorado.
A CAPES tem sido instrumental para a expansão e consolidação da formação
em nível de pós-graduação. No entanto, seus programas de bolsas de estudo e
pesquisa, que permitem a dedicação desses jovens pesquisadores, padecem de
restrições crescentes de recursos e os valores das bolsas encontram-se
defasados pela ausência de reajustes recentes. As inúmeras mudanças na gestão,
com dirigentes cada vez menos capacitados para suas funções, têm gerado
instabilidades e controvérsias que lançam incertezas sobre a sustentação dos
programas de pós-graduação.
O estudo histórico do sucesso moderno da pesquisa tem mostrado
repetidamente que o conhecimento básico, a tecnologia e a inovação estão
intensamente conectados formando um único e coeso tecido. Ademais, avanços
científicos e tecnológicos emergem do conhecimento resultante de investimentos
e contribuições de muitos grupos de pesquisa ao longo de anos.
Por seu caráter sistêmico, os grandes desafios do Brasil no plano
nacional e internacional só poderão ser enfrentados a partir de um investimento
consistente e previsível em ciência e na formação de recursos humanos com
conhecimentos, habilidades e ferramentas necessários para lidar com questões
complexas que envolvem dimensões sociais, econômicas e ambientais. Não se trata
somente de compartilhar os produtos da ciência, mas também os seus valores como
o raciocínio crítico, a resiliência diante da incerteza e o apreço pelo
conhecimento.
A atuação míope do Ministério da Economia ao propor o corte das verbas
suplementares para a ciência brasileira, e a falta de interesse ou avaliação
profunda por parte do Senado Federal das consequências nefastas desse corte,
tornam o país refém de um presente medíocre e de um futuro sem perspectivas.
Mercedes Bustamante é pesquisadora da UnB e membro da Coalizão
Ciência e Sociedade.
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