Um giro militarista na Argentina?
Quarenta anos após a redemocratização, militares são deslocados aos centros urbanos do país. Visitas a ex-torturadores da ditadura de Videla estão na agenda oficial do governo Milei. E políticas de Segurança Interna repressivas tentam garantir agenda ultraliberal
Eduardo Giordano, no El Salto, com tradução na Revista Opera/Outras Palavras
Uma das principais bandeiras políticas do governo de Milei é de ordem econômica: a luta contra a inflação, que desacelerou nos últimos meses, embora mais nos números oficiais do que na percepção do público. Outra bandeira política e, nesse caso, ideológica, que o catapultou para o governo, foi o discurso reacionário de extrema-direita, mascarando o terrorismo de Estado da ditadura de Videla, característico de sua política de segurança, encabeçada pela ministra Patricia Bullrich e dirigida ideologicamente pela vice-presidente Victoria Villarruel.
Villarruel, filha de um militar que esteve envolvido no extermínio da chamada “subversão” na década de 1970, é uma defensora ferrenha dos militares genocidas da última ditadura. Depois de concluir seu curso de direito em 2003, no início do governo de Néstor Kirchner e de sua exigente política de direitos humanos, Villarruel criou o Centro de Estudos Jurídicos sobre Terrorismo e suas Vítimas (Celtyv), uma organização de “memória completa”, que pretende processar os líderes guerrilheiros pela morte de militares, em uma tentativa de equiparar o terrorismo de Estado à atuação das guerrilhas. De certa forma, seria um retorno à chamada “teoria dos dois demônios”, sempre vigente entre alguns setores da sociedade que apoiaram a ditadura, mas agora com uma ênfase revanchista. Fundadora da organização J&oa cute;venes por la Verdad (Jovens pela Verdade), “um grupo cuja principal atividade era realizar visitas ao ditador Jorge Rafael Videla”, Villarruel publicou em 2014 “Os outros mortos: as vítimas civis do terrorismo guerrilheiro dos anos 70” (Los otros muertos: Las víctimas civiles del terrorismo guerrillero de los 70), livro escrito por Villarruel em colaboração com Carlos Manfroni, no qual antecipa o revisionismo dos processos contra repressores militares que agora é promovido a partir de sua condição política.
Negacionismo e encobrimento do genocídio: a visita a Astiz
No dia 11 de julho, seis deputados do bloco da coalizão La Libertad Avanza (LLA) visitaram o repudiado repressor Alfredo Astiz, condenado à prisão perpétua, na prisão de Ezeiza, uma prisão onde também se encontraram e foram fotografados sorrindo com outros criminosos contra a humanidade do Exército, da Marinha e de outras forças de segurança. A mensagem implícita dessa ação é de um apoio total à ideia de anistiá-los, de acordo com a agenda da vice-presidente. Vários legisladores que participaram da visita, liderados por Beltrán Benedit, têm vínculos diretos com Victoria Villarruel. Benedit nega que esses militares tenham sido repressores e os descreve como “ex-combatentes que travaram batalhas contra a subversão marxista”, além de caracterizar como uma “farsa” os julgamentos por crimes contra a humanidade q ue os condenam como genocidas. Benedit é um produtor agrícola da província de Entre Ríos, ex-diretor do grupo de lobby do agronegócio Sociedade Rural Argentina. Essa não foi sua primeira visita a oficiais militares desse tipo. Meses atrás, no dia 15 de março, Beltrán Benedit esteve na prisão Campo de Mayo, um centro de detenção destinado apenas aos repressores da última ditadura. Depois dessa visita, ele escreveu no X, em resposta à filha de um dos detidos: “Estamos trabalhando para a imediata libertação de todos os patriotas”.
Entre os ideólogos que inspiram esses representantes da LLA, um certo José D’Angelo, autor do livro negacionista A fraude com os desaparecidos (La estafa con los desaparecidos), ocupa um lugar privilegiado. A hipótese de D’Angelo, colocada na apresentação de seu livro em novembro de 2021, é de que “a Secretaria de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça da Nação falsificaram histórias e adulteraram documentos públicos, facilitando uma fraude multimilionária com os desaparecidos”. Com base em dados extrapolados de alguns casos que são difíceis de generalizar, esse fervoroso defensor da impunidade aos perpetradores de genocídio avança a tese de que muitos beneficiários da indenização estatal estão vivos ou morreram em confrontos com as forças de segurança.
O gesto desses legisladores negacionistas gerou polêmica até mesmo entre outros membros de seu próprio bloco (composto por 38 deputados) e foi repudiado pela oposição e por diferentes legisladores de partidos aliados ao governo. O comitê nacional da União Cívica Radical (UCR), cujos legisladores majoritariamente votaram a favor da Lei de Bases, expressou que “repudia a visita feita pelos deputados da LLA a um grupo de repressores condenados por atos aberrantes”, acrescentando que “é uma afronta às vítimas, às suas famílias e a todo o povo argentino que decidiu há 40 anos viver em democracia e sob a proteção da Constituição”. A visita foi autorizada pelo presidente do Congresso, Martín Menem, e os seus participantes viajaram em um veículo oficial. Benedit justificou a visita em uma mensagem de WhatsApp para os outros membr os do bloco, na qual fez alusão a Milei: “o presidente combate essa ideologia [do] terrorismo marxista na política”. E concluiu: “Estamos indo resgatar o Estado de Direito com um espírito de justiça”.
As manifestações de repúdio não demoraram a chegar. A visita aos repressores tem uma dimensão simbólica que visa desgastar o consenso democrático alcançado com os julgamentos dos repressores e o “Nunca Mais”. Astiz representa a faceta mais grotesca da ditadura de Videla. Conhecido como o “Anjo Loiro” ou o “Anjo da Morte”, ele se infiltrou na organização das Mães da Plaza de Mayo com o nome de Gustavo Niño, sob o pretexto de procurar sua irmã desaparecida. Na realidade, o capitão de fragata Alfredo Astiz chefiava um grupo de inteligência na Escola de Mecânica da Marinha (ESMA), o maior centro clandestino de detenção, tortura e morte da ditadura, pelo qual passaram mais de cinco mil pessoas. Entre seus crimes mais horrendos esteve o sequestro e o assassinato de duas freiras passionistas francesas, Alice Domon e Léonie Duquet, que colaboravam na busca de jovens desaparecidos a partir de sua paróquia. Depois de serem torturadas na ESMA por dez dias, as freiras foram sedadas com pentotal e jogadas vivas no Rio da Prata em um dos sinistros “voos da morte”. O corpo de Duquet, juntamente com o de uma das fundadoras das Madres, Azucena Villaflor, e duas outras mulheres ligadas a elas, foram encontrados boiando perto da praia de Santa Teresita (Buenos Aires) no final de dezembro de 1977.
Além da visita dos seis deputados mileistas à prisão de Ezeiza, o jornal Página 12 informou que meses antes, em março, dois funcionários do Ministério da Defesa, liderados por Luis Petri, subsecretário de Planejamento Estratégico e Política Militar e diretor nacional de Direitos Humanos, haviam visitado a prisão Campo de Mayo para se reunir com outro grupo de ex-repressores. O jornal afirma que essa visita faz parte da “nova marca” que Petri quer dar à área de direitos humanos do Ministério da Defesa, reivindicando a chamada “memória completa”. Para avançar nessa área, o ministério anunciou a demissão dos especialistas que analisaram os arquivos das Forças Armadas para contribuir com os processos por crimes contra a humanidade, acusando-os de serem um “grupo parajudicial” que praticou “macarthismo” contra os militares, e incorporou Arturo Larrabure e Silvia Ibarzábal, ativistas de organizações de “memória completa”, em cargos de direção. Larrabure é o vice-presidente do Centro de Estudos Jurídicos sobre Terrorismo e suas Vítimas (Celtyv), organização presidida por Victoria Villarruel.
A tentativa de Villarruel e de seus deputados mais dedicados de eximir os torturadores e genocidas da responsabilidade por seus crimes de Estado não parece encontrar muito respaldo na sociedade argentina como um todo, que tende a ver aquela época como um capítulo encerrado da história recente e não deseja reabrir as feridas dos últimos 40 anos após o início dos julgamentos dos ditadores, em 1985.
Alguns juízes solicitaram informações sobre a visita à ministra da Segurança, que é responsável pelo Serviço Penitenciário Federal (SPF). O primeiro a fazer isso foi o juiz Alejandro Slokar, membro da Câmara de Cassação Criminal e coordenador da Comissão de Crimes contra a Humanidade. Daniel Obligado, que presidiu vários julgamentos contra a humanidade nos quais dezenas de repressores, incluindo Alfredo Astiz, foram condenados, também o fez. Por sua vez, a Comissão pela Memória apresentou uma denúncia criminal contra Benedit “pelo delito de apologia ao crime”. A tentativa de reacender as chamas daqueles anos de difíceis equilíbrios políticos e judiciais alcançados durante o governo de Raúl Alfonsín poderia levar a uma polarização extrema da vida política argentina que poucos desejaria m, mas que parece fazer parte do DNA do governo Milei-Villarruel.
Política de segurança interna: a nova virada repressiva
Pouco depois governo da La Libertad Avanza tomou posse, em 15 de dezembro de 2023, a ministra da Segurança anunciou a Resolução 943/2023, que estabelece o “Protocolo para a manutenção da ordem pública diante de bloqueios de estradas”, que, entre outras medidas, inclui a identificação e a detenção daqueles que lideram ou participam de protestos em vias públicas, bem como a cobrança de multas às organizações sociais pelos custos de intervenção das forças de segurança enviadas para reprimi-las.
O “protocolo antipiquete”, como é popularmente conhecido, envolve a intervenção das quatro forças federais (Polícia Federal, Gendarmaria, Prefeitura Naval e Polícia de Segurança Aeroportuária), bem como do Serviço Penitenciário Federal, em face de bloqueios de estradas, piquetes ou bloqueios totais ou parciais. Esse protocolo é aplicado desde que o número de pessoas presentes nas passeatas não exceda a capacidade operacional das forças repressivas. Não havia possibilidade material de aplicá-lo na gigantesca marcha pela educação pública realizada em 23 de abril, com cerca de 800 mil pessoas protestando no centro de Buenos Aires e mais de um milhão em t odo o país.
Ao apresentar o protocolo, Patricia Bullrich disse: “A conta de todos os custos relacionados às operações de segurança será enviada às organizações ou indivíduos responsáveis. O Estado não pagará pelo uso das forças de segurança”. E ela não deixou de repetir seu slogan característico de campanha: “Quem faz, paga”. Um slogan que acabou sendo adotado pelo presidente e por outros membros da LLA desde que Bullrich entrou para o governo. As críticas vieram de organizações sociais e partidos de oposição. O governo da província de Buenos Aires, chefiado pelo peronista Axel Kiciloff, declarou que não aplicaria as novas normas de segurança porque, em sua opinião, elas “criminalizam o protesto”.
A seguinte reviravolta na política de segurança ocorreu em março, com o surto de vários crimes cometidos em Rosário por máfias narcotraficantes. O Ministério da Segurança fez um envio de tropas extraordinário em Rosário, a terceira cidade mais populosa do país e o principal porto agroexportador. Uma cidade onde a enorme desigualdade social gera contradições entre a sociedade opulenta e os grandes bolsões de marginalidade e desemprego crônico, onde o microtráfico de drogas se prolifera. O envio de tropas incluiu recursos para “apoiar a luta por ar, terra e água” contra as gangues de drogas: helicópteros, barcos, veículos e mais de 120 militares uniformizados. Pela primeira vez em 40 anos de democracia, os militares se deslocaram para um centro urbano para intervir, juntamente com as forças de segurança federais e provinciais, na luta contra as gangues criminosas, marcando um precedente da intenção de militarizar as ruas precocemente para naturalizar sua presença e conter o surgimento previsível de protestos sociais no território.
A maior mobilização do sistema repressivo ocorreu em 12 de junho, em frente ao Congresso, durante o debate parlamentar e a votação da Lei de Bases. Naquele dia, 33 pessoas foram presas enquanto participavam de uma marcha espontânea contra a aprovação dessa lei altamente questionada. Quase metade dos detidos foi libertada dois dias depois. Um juiz ordenou sua libertação, rejeitando o pedido do promotor para mantê-los todos sob custódia sob a acusação de “terrorismo” e “sedição”. O promotor abriu uma acusação contra os detidos por “incitação à violência coletiva contra instituições” e “crime contra os poderes políticos e a ordem constitucional”, entre muitas outras acusações, além da ameaça de aplicar um artigo do Código Penal referente a ações terroristas.
Mais de uma dúzia de manifestantes que permaneceram detidos foram liberados dias depois por “falta de mérito”, restando apenas quatro presos. No dia 11 de julho, foi revogada a prisão preventiva de dois outros detidos, que ficaram em prisões federais por quase um mês e continuarão a ser investigados, e duas pessoas foram presas por supostamente incendiarem uma bicicleta e um contêiner.
Em suma, das 33 pessoas detidas arbitrariamente pelas forças de segurança e liberadas alguns dias ou semanas depois, apenas duas permaneceram detidas com um julgamento em andamento. O resultado final mostra que as prisões foram realizadas de forma arbitrária, como muitos dos manifestantes denunciaram, ou em situações que não puderam ser documentadas como criminosas. 94% dos detidos acabaram sendo liberados por falta de provas. Um deles, libertado depois de passar dois dias na prisão, foi Santiago Adano, um músico que não pertence a nenhum partido e que compareceu por iniciativa própria. Sua irmã conta sobre os maus-tratos que ele sofreu: “Ele estava na calçada, no meio das pessoas, quando saiu do metrô, e policiais à paisana o agarraram por trás, puxaram-no e o levaram embora. Começaram a arrastá-lo para longe. Foi assim que descobrimos. Eles o arrasta ram entre 30 policiais e o sufocaram. Seu rosto estava vermelho. Tanto que ele ficou doente. Fiquei muito preocupado até as primeiras horas da manhã de quinta-feira porque eles não nos diziam onde ele estava”.
Adano está participando, junto com outros prisioneiros libertados, de pedidos pela libertação daqueles que permanecem detidos. Em um comunicado coletivo intitulado “Liberdade para os detidos da Lei de Bases e fim da perseguição”, os signatários afirmam que os privados de liberdade “foram vítimas de maus-tratos durante sua detenção”. “Da mesma forma, repudiamos firmemente e exigimos o fim da criminalização das organizações políticas, sociais e sindicais que, por terem participado dessa mobilização, para o Poder Executivo tornam-se ‘terroristas’ que atuaram em ‘uma tentativa de golpe de Estado’, acusações totalmente absurdas e infundadas”. O abaixo-assinado acrescenta que, durante a manifestação de 12 de junho, “as forças de segurança não só reprimiram colunas de manifestantes que estavam exercendo seu direito constitucional de protestar, mas também deputados nacionais, alguns dos quais foram feridos pelas ações das forças do Estado”. De fato, vários deputados que saíram para fazer a mediação entre as forças de segurança e os manifestantes foram atacados com spray de pimenta pela polícia.
Revanchismo e operações de inteligência
Uma forma de impor uma visão revanchista sobre a repressão ilegal durante a ditadura é obstruir o trabalho das organizações de direitos humanos. Entre as organizações prejudicadas pela política de segurança do governo de Milei está a Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (CONADI), criada em 1992, que é responsável pela busca de filhos e filhas de desaparecidos e de pessoas nascidas e mantidas em cativeiro com suas mães durante a última ditadura. Em maio do ano passado, o Ministério da Segurança negou-lhe o direito de solicitar arquivos da polícia federal e das forças de segurança para suas investigações.
Outro aspecto questionado da política de Segurança Interna é o avanço das expulsões de comunidades indígenas dos territórios que elas reivindicam como seus desde tempos ancestrais. Os conflitos mais frequentes são com as comunidades mapuches na Patagônia. Por exemplo, no final de julho, o porta-voz Manuel Adorni anunciou “o despejo forçado da comunidade Lof Paillako” da terra que foi ocupada em 2020 no Parque Nacional Los Alerces, na província de Chubut. Sua expulsão dessa terra pública implicará na demolição das casas e dos meios de subsistência dessa população nativa. Uma política que tem uma linha de continuidade com aquela aplicada durante o governo de Macri, também sob a direção de Patricia Bullrich como ministra da Segurança.
Por outro lado, em julho passado, o governo da LLA restabeleceu o antigo nome dos serviços de inteligência, a Secretaria de Inteligência do Estado (SIDE), no lugar da Agência Federal de Inteligência (AFI) que a substituiu durante o governo de Alberto Fernández. Além disso, Milei atribuiu por decreto à SIDE um orçamento para despesas reservadas de 100 bilhões de pesos, triplicando os fundos para seus equipamentos. Tudo o que acontece na agência de inteligência estatal tem a aprovação do conselheiro presidencial Santiago Luis Caputo, sobrinho do ministro da Economia Luis Caputo.
Nesse sentido, o Procurador Geral da Nação, Eduardo Casal, rejeitou o plano de criar uma Procuradoria de Inteligência Especializada (artigo 28 da DNU), que coordenaria os contatos de todo o sistema de justiça federal com a SIDE e seus agentes. Essa possibilidade deixa até mesmo a mídia do establishment desconfortável. O promotor ordenou que essas funções permaneçam na órbita da Secretaria de Coordenação Institucional da Procuradoria Geral da República. Casal afirmou que essa instituição “é um organismo que exerce suas funções com autonomia funcional” e já tem diferentes instâncias para o julgamento de crimes. Outros membros da instituição declararam que a proposta do governo é “um absurdo” porque “aceitar esse projeto implicaria criar uma promotoria baseada na ferrament a de investigação – a inteligência – e não [com base] no tema ou no crime”.
Nos meios de comunicação críticos ao governo, sugere-se que o conselheiro presidencial Santiago Caputo, apontado como responsável pela criação de “fazendas de trolls” que atuam a favor de Milei nas redes sociais, contaria assim com somas multimilionárias de fundos reservadas da SIDE para continuar sua atividade de desinformação e propaganda com dinheiro público.
O Exército poderá patrulhar as ruas
Em paralelo ao avanço do esquema repressivo, o governo legitima a restauração de um culto pseudopatriótico baseado na exaltação das Forças Armadas. Em 9 de julho passado, no Dia da Independência Nacional, o presidente Javier Milei e a vice-presidente Victoria Villarruel desfilaram sorridentes a bordo de um tanque do Exército, à frente de uma coluna de veículos blindados. Mais de 7 mil soldados de diferentes forças participaram do desfile, um gasto supérfluo de difícil justificação em tempos de austeridade e cortes orçamentários. Mas a dimensão simbólica do evento é evidente quando o governo também está apertando os parafusos da repressão contra os protestos.
O novo projeto de Lei de Segurança Interna, enviado pelo Ministério da Defesa ao Congresso em 5 de agosto, dá ao Exército poderes que foram abolidos desde a última ditadura genocida. O objetivo dessa lei é permitir que as Forças Armadas atuem dentro do território para “restabelecer a segurança interna por meio de patrulhamento nas ruas, controle de pessoas e veículos, colaboração em postos de controle fixos ou móveis, vigilância de instalações imobiliárias e prisão em flagrante delito”.
A ideia do Exército patrulhando as ruas das cidades, identificando pessoas e prendendo-as é por si só uma regressão no tempo. Ela reaviva no imaginário de grande parte da sociedade a lembrança da última vez em que isso aconteceu, durante a ditadura, quando os comandos especiais das Forças Armadas tinham rédeas soltas para sequestrar e desaparecer cidadãos, massacrar civis, assassinar clérigos e sequestrar bebês, entre muitos outros crimes contra a humanidade.
O objetivo do governo com esse projeto de lei é ter um instrumento permanente de intervenção militar contra protestos que não exija a declaração prévia de estado de sítio. A construção propagandística do governo de Milei, que aponta os manifestantes como “terroristas”, é uma distorção que falsifica os fundamentos do direito, quando a lei propõe que as Forças Armadas atuem “no caso de ações terroristas que visem aterrorizar a população, sem a necessidade de utilizar um recurso extremo, como a declaração de estado de sítio”. Essa intervenção seria possibilitada pelo Comitê de Crise do Ministério da Defesa, chefiado por Luis Peltri, cujo poder se sobrepõe ao de outros ministérios, como o do Interior e o da Segurança. O projeto de lei estabelece a transfer ência, da Segurança para a Defesa, de aspectos cruciais da direção dos serviços secretos, como “dirigir e coordenar a atividade dos órgãos de informação e inteligência da Polícia Federal, do Serviço Penitenciário e da Polícia Aeroportuária, bem como daqueles pertencentes à Gendarmaria e à Prefeitura [Naval]”. A militarização da repressão social legalmente consagrada para impor a pilhagem econômica a sangue e fogo permitirá que qualquer pessoa que resista por seus direitos ou de seu povo diante da subjugação do poder seja caracterizada como terrorista.
Olhemos brevemente aos antecedentes. Um decreto assinado em 2006 por Néstor Kirchner estabeleceu explicitamente os limites da ação militar e impediu a intervenção em questões de segurança interna. Posteriormente, esse decreto foi modificado durante a presidência de Macri para dar mais poderes ao Exército. E essa mudança foi revogada pelo governo de Alberto Fernández, que restabeleceu a regra anterior.
O programa econômico neoliberal mais radical já aplicado na Argentina, e que mais tarde teve suas derivações, foi o do ministro da Economia José Martínez de Hoz, sob a ditadura de Videla e sua festa macabra e sanguinária. Os princípios declarados por Martínez de Hoz como aspectos centrais de seu plano econômico foram copiados pelos promotores do Consenso de Washington e, por sua vez, adotados por Javier Milei.
Na década de 1970 e no início da década de 1980, esse plano, que deu início ao endividamento feroz do país e, ao mesmo tempo, incentivou uma extraordinária fuga de capitais, teve o apoio inabalável das três Forças Armadas que governavam o país: o Exército, a Marinha e a Força Aérea. O golpe de Estado de abril de 1976 impôs as condições para a implementação dessa política econômica a sangue e fogo, já que o que restava era sufocar economicamente ou eliminar aqueles que resistiam.
Neste primeiro estágio do governo de Javier Milei, a vontade de reproduzir o sistema repressivo característico da ditadura pode ser observada por meio da aprovação de leis que aumentam o poder efetivo dos militares sobre o restante das forças de segurança. Em resumo, a presença contínua do Exército e de outras Forças Armadas na esfera pública equivaleria a um virtual estado de sítio permanente. Uma maneira eficaz de inibir as marchas de protesto e internalizar o sistema repressivo na mente dos cidadãos. E uma violação flagrante e contínua dos direitos humanos.Uma das principais bandeiras políticas do governo de Milei é de ordem econômica: a luta contra a inflação, que desacelerou nos últimos meses, embora mais nos números oficiais do que na percepção do público. Outra bandeira política e, nesse c aso, ideológica, que o catapultou para o governo, foi o discurso reacionário de extrema-direita, mascarando o terrorismo de Estado da ditadura de Videla, característico de sua política de segurança, encabeçada pela ministra Patricia Bullrich e dirigida ideologicamente pela vice-presidente Victoria Villarruel.
Villarruel, filha de um militar que esteve envolvido no extermínio da chamada “subversão” na década de 1970, é uma defensora ferrenha dos militares genocidas da última ditadura. Depois de concluir seu curso de direito em 2003, no início do governo de Néstor Kirchner e de sua exigente política de direitos humanos, Villarruel criou o Centro de Estudos Jurídicos sobre Terrorismo e suas Vítimas (Celtyv), uma organização de “memória completa”, que pretende processar os líderes guerrilheiros pela morte de militares, em uma tentativa de equiparar o terrorismo de Estado à atuação das guerrilhas. De certa forma, seria um retorno à chamada “teoria dos dois demônios”, sempre vigente entre alguns setores da sociedade que apoiaram a ditadura, mas agora com uma ênfase revanchista. Fundadora da organização J&oa cute;venes por la Verdad (Jovens pela Verdade), “um grupo cuja principal atividade era realizar visitas ao ditador Jorge Rafael Videla”, Villarruel publicou em 2014 “Os outros mortos: as vítimas civis do terrorismo guerrilheiro dos anos 70” (Los otros muertos: Las víctimas civiles del terrorismo guerrillero de los 70), livro escrito por Villarruel em colaboração com Carlos Manfroni, no qual antecipa o revisionismo dos processos contra repressores militares que agora é promovido a partir de sua condição política.
Negacionismo e encubrimento do genocídio: a visita a Astiz
No dia 11 de julho, seis deputados do bloco da coalizão La Libertad Avanza (LLA) visitaram o repudiado repressor Alfredo Astiz, condenado à prisão perpétua, na prisão de Ezeiza, uma prisão onde também se encontraram e foram fotografados sorrindo com outros criminosos contra a humanidade do Exército, da Marinha e de outras forças de segurança. A mensagem implícita dessa ação é de um apoio total à ideia de anistiá-los, de acordo com a agenda da vice-presidente. Vários legisladores que participaram da visita, liderados por Beltrán Benedit, têm vínculos diretos com Victoria Villarruel. Benedit nega que esses militares tenham sido repressores e os descreve como “ex-combatentes que travaram batalhas contra a subversão marxista”, além de caracterizar como uma “farsa” os julgamentos por crimes contra a humanidade q ue os condenam como genocidas. Benedit é um produtor agrícola da província de Entre Ríos, ex-diretor do grupo de lobby do agronegócio Sociedade Rural Argentina. Essa não foi sua primeira visita a oficiais militares desse tipo. Meses atrás, no dia 15 de março, Beltrán Benedit esteve na prisão Campo de Mayo, um centro de detenção destinado apenas aos repressores da última ditadura. Depois dessa visita, ele escreveu no X, em resposta à filha de um dos detidos: “Estamos trabalhando para a imediata libertação de todos os patriotas”.
Entre os ideólogos que inspiram esses representantes da LLA, um certo José D’Angelo, autor do livro negacionista A fraude com os desaparecidos (La estafa con los desaparecidos), ocupa um lugar privilegiado. A hipótese de D’Angelo, colocada na apresentação de seu livro em novembro de 2021, é de que “a Secretaria de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça da Nação falsificaram histórias e adulteraram documentos públicos, facilitando uma fraude multimilionária com os desaparecidos”. Com base em dados extrapolados de alguns casos que são difíceis de generalizar, esse fervoroso defensor da impunidade aos perpetradores de genocídio avança a tese de que muitos beneficiários da indenização estatal estão vivos ou morreram em confrontos com as forças de segurança.
O gesto desses legisladores negacionistas gerou polêmica até mesmo entre outros membros de seu próprio bloco (composto por 38 deputados) e foi repudiado pela oposição e por diferentes legisladores de partidos aliados ao governo. O comitê nacional da União Cívica Radical (UCR), cujos legisladores majoritariamente votaram a favor da Lei de Bases, expressou que “repudia a visita feita pelos deputados da LLA a um grupo de repressores condenados por atos aberrantes”, acrescentando que “é uma afronta às vítimas, às suas famílias e a todo o povo argentino que decidiu há 40 anos viver em democracia e sob a proteção da Constituição”. A visita foi autorizada pelo presidente do Congresso, Martín Menem, e os seus participantes viajaram em um veículo oficial. Benedit justificou a visita em uma mensagem de WhatsApp para os outros membr os do bloco, na qual fez alusão a Milei: “o presidente combate essa ideologia [do] terrorismo marxista na política”. E concluiu: “Estamos indo resgatar o Estado de Direito com um espírito de justiça”.
As manifestações de repúdio não demoraram a chegar. A visita aos repressores tem uma dimensão simbólica que visa desgastar o consenso democrático alcançado com os julgamentos dos repressores e o “Nunca Mais”. Astiz representa a faceta mais grotesca da ditadura de Videla. Conhecido como o “Anjo Loiro” ou o “Anjo da Morte”, ele se infiltrou na organização das Mães da Plaza de Mayo com o nome de Gustavo Niño, sob o pretexto de procurar sua irmã desaparecida. Na realidade, o capitão de fragata Alfredo Astiz chefiava um grupo de inteligência na Escola de Mecânica da Marinha (ESMA), o maior centro clandestino de detenção, tortura e morte da ditadura, pelo qual passaram mais de cinco mil pessoas. Entre seus crimes mais horrendos esteve o sequestro e o assassinato de duas freiras passionistas francesas, Alice Domon e Léonie Duquet, que colaboravam na busca de jovens desaparecidos a partir de sua paróquia. Depois de serem torturadas na ESMA por dez dias, as freiras foram sedadas com pentotal e jogadas vivas no Rio da Prata em um dos sinistros “voos da morte”. O corpo de Duquet, juntamente com o de uma das fundadoras das Madres, Azucena Villaflor, e duas outras mulheres ligadas a elas, foram encontrados boiando perto da praia de Santa Teresita (Buenos Aires) no final de dezembro de 1977.
Além da visita dos seis deputados mileistas à prisão de Ezeiza, o jornal Página 12 informou que meses antes, em março, dois funcionários do Ministério da Defesa, liderados por Luis Petri, subsecretário de Planejamento Estratégico e Política Militar e diretor nacional de Direitos Humanos, haviam visitado a prisão Campo de Mayo para se reunir com outro grupo de ex-repressores. O jornal afirma que essa visita faz parte da “nova marca” que Petri quer dar à área de direitos humanos do Ministério da Defesa, reivindicando a chamada “memória completa”. Para avançar nessa área, o ministério anunciou a demissão dos especialistas que analisaram os arquivos das Forças Armadas para contribuir com os processos por crimes contra a humanidade, acusando-os de serem um “grupo parajudicial” que praticou “macarthismo” contra os militares, e incorporou Arturo Larrabure e Silvia Ibarzábal, ativistas de organizações de “memória completa”, em cargos de direção. Larrabure é o vice-presidente do Centro de Estudos Jurídicos sobre Terrorismo e suas Vítimas (Celtyv), organização presidida por Victoria Villarruel.
A tentativa de Villarruel e de seus deputados mais dedicados de eximir os torturadores e genocidas da responsabilidade por seus crimes de Estado não parece encontrar muito respaldo na sociedade argentina como um todo, que tende a ver aquela época como um capítulo encerrado da história recente e não deseja reabrir as feridas dos últimos 40 anos após o início dos julgamentos dos ditadores, em 1985.
Alguns juízes solicitaram informações sobre a visita à ministra da Segurança, que é responsável pelo Serviço Penitenciário Federal (SPF). O primeiro a fazer isso foi o juiz Alejandro Slokar, membro da Câmara de Cassação Criminal e coordenador da Comissão de Crimes contra a Humanidade. Daniel Obligado, que presidiu vários julgamentos contra a humanidade nos quais dezenas de repressores, incluindo Alfredo Astiz, foram condenados, também o fez. Por sua vez, a Comissão pela Memória apresentou uma denúncia criminal contra Benedit “pelo delito de apologia ao crime”. A tentativa de reacender as chamas daqueles anos de difíceis equilíbrios políticos e judiciais alcançados durante o governo de Raúl Alfonsín poderia levar a uma polarização extrema da vida política argentina que poucos desejaria m, mas que parece fazer parte do DNA do governo Milei-Villarruel.
Política de segurança interna: a nova virada repressiva
Pouco depois governo da La Libertad Avanza tomou posse, em 15 de dezembro de 2023, a ministra da Segurança anunciou a Resolução 943/2023, que estabelece o “Protocolo para a manutenção da ordem pública diante de bloqueios de estradas”, que, entre outras medidas, inclui a identificação e a detenção daqueles que lideram ou participam de protestos em vias públicas, bem como a cobrança de multas às organizações sociais pelos custos de intervenção das forças de segurança enviadas para reprimi-las.
O “protocolo antipiquete”, como é popularmente conhecido, envolve a intervenção das quatro forças federais (Polícia Federal, Gendarmaria, Prefeitura Naval e Polícia de Segurança Aeroportuária), bem como do Serviço Penitenciário Federal, em face de bloqueios de estradas, piquetes ou bloqueios totais ou parciais. Esse protocolo é aplicado desde que o número de pessoas presentes nas passeatas não exceda a capacidade operacional das forças repressivas. Não havia possibilidade material de aplicá-lo na gigantesca marcha pela educação pública realizada em 23 de abril, com cerca de 800 mil pessoas protestando no centro de Buenos Aires e mais de um milhão em t odo o país.
Ao apresentar o protocolo, Patricia Bullrich disse: “A conta de todos os custos relacionados às operações de segurança será enviada às organizações ou indivíduos responsáveis. O Estado não pagará pelo uso das forças de segurança”. E ela não deixou de repetir seu slogan característico de campanha: “Quem faz, paga”. Um slogan que acabou sendo adotado pelo presidente e por outros membros da LLA desde que Bullrich entrou para o governo. As críticas vieram de organizações sociais e partidos de oposição. O governo da província de Buenos Aires, chefiado pelo peronista Axel Kiciloff, declarou que não aplicaria as novas normas de segurança porque, em sua opinião, elas “criminalizam o protesto”.
A seguinte reviravolta na política de segurança ocorreu em março, com o surto de vários crimes cometidos em Rosário por máfias narcotraficantes. O Ministério da Segurança fez um envio de tropas extraordinário em Rosário, a terceira cidade mais populosa do país e o principal porto agroexportador. Uma cidade onde a enorme desigualdade social gera contradições entre a sociedade opulenta e os grandes bolsões de marginalidade e desemprego crônico, onde o microtráfico de drogas se prolifera. O envio de tropas incluiu recursos para “apoiar a luta por ar, terra e água” contra as gangues de drogas: helicópteros, barcos, veículos e mais de 120 militares uniformizados. Pela primeira vez em 40 anos de democracia, os militares se deslocaram para um centro urbano para intervir, juntamente com as forças de segurança federais e provinciais, na luta contra as gangues criminosas, marcando um precedente da intenção de militarizar as ruas precocemente para naturalizar sua presença e conter o surgimento previsível de protestos sociais no território.
A maior mobilização do sistema repressivo ocorreu em 12 de junho, em frente ao Congresso, durante o debate parlamentar e a votação da Lei de Bases. Naquele dia, 33 pessoas foram presas enquanto participavam de uma marcha espontânea contra a aprovação dessa lei altamente questionada. Quase metade dos detidos foi libertada dois dias depois. Um juiz ordenou sua libertação, rejeitando o pedido do promotor para mantê-los todos sob custódia sob a acusação de “terrorismo” e “sedição”. O promotor abriu uma acusação contra os detidos por “incitação à violência coletiva contra instituições” e “crime contra os poderes políticos e a ordem constitucional”, entre muitas outras acusações, além da ameaça de aplicar um artigo do Código Penal referente a ações terroristas.
Mais de uma dúzia de manifestantes que permaneceram detidos foram liberados dias depois por “falta de mérito”, restando apenas quatro presos. No dia 11 de julho, foi revogada a prisão preventiva de dois outros detidos, que ficaram em prisões federais por quase um mês e continuarão a ser investigados, e duas pessoas foram presas por supostamente incendiarem uma bicicleta e um contêiner.
Em suma, das 33 pessoas detidas arbitrariamente pelas forças de segurança e liberadas alguns dias ou semanas depois, apenas duas permaneceram detidas com um julgamento em andamento. O resultado final mostra que as prisões foram realizadas de forma arbitrária, como muitos dos manifestantes denunciaram, ou em situações que não puderam ser documentadas como criminosas. 94% dos detidos acabaram sendo liberados por falta de provas. Um deles, libertado depois de passar dois dias na prisão, foi Santiago Adano, um músico que não pertence a nenhum partido e que compareceu por iniciativa própria. Sua irmã conta sobre os maus-tratos que ele sofreu: “Ele estava na calçada, no meio das pessoas, quando saiu do metrô, e policiais à paisana o agarraram por trás, puxaram-no e o levaram embora. Começaram a arrastá-lo para longe. Foi assim que descobrimos. Eles o arrasta ram entre 30 policiais e o sufocaram. Seu rosto estava vermelho. Tanto que ele ficou doente. Fiquei muito preocupado até as primeiras horas da manhã de quinta-feira porque eles não nos diziam onde ele estava”.
Adano está participando, junto com outros prisioneiros libertados, de pedidos pela libertação daqueles que permanecem detidos. Em um comunicado coletivo intitulado “Liberdade para os detidos da Lei de Bases e fim da perseguição”, os signatários afirmam que os privados de liberdade “foram vítimas de maus-tratos durante sua detenção”. “Da mesma forma, repudiamos firmemente e exigimos o fim da criminalização das organizações políticas, sociais e sindicais que, por terem participado dessa mobilização, para o Poder Executivo tornam-se ‘terroristas’ que atuaram em ‘uma tentativa de golpe de Estado’, acusações totalmente absurdas e infundadas”. O abaixo-assinado acrescenta que, durante a manifestação de 12 de junho, “as forças de segurança não só reprimiram colunas de manifestantes que estavam exercendo seu direito constitucional de protestar, mas também deputados nacionais, alguns dos quais foram feridos pelas ações das forças do Estado”. De fato, vários deputados que saíram para fazer a mediação entre as forças de segurança e os manifestantes foram atacados com spray de pimenta pela polícia.
Revanchismo e operações de inteligência
Uma forma de impor uma visão revanchista sobre a repressão ilegal durante a ditadura é obstruir o trabalho das organizações de direitos humanos. Entre as organizações prejudicadas pela política de segurança do governo de Milei está a Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (CONADI), criada em 1992, que é responsável pela busca de filhos e filhas de desaparecidos e de pessoas nascidas e mantidas em cativeiro com suas mães durante a última ditadura. Em maio do ano passado, o Ministério da Segurança negou-lhe o direito de solicitar arquivos da polícia federal e das forças de segurança para suas investigações.
Outro aspecto questionado da política de Segurança Interna é o avanço das expulsões de comunidades indígenas dos territórios que elas reivindicam como seus desde tempos ancestrais. Os conflitos mais frequentes são com as comunidades mapuches na Patagônia. Por exemplo, no final de julho, o porta-voz Manuel Adorni anunciou “o despejo forçado da comunidade Lof Paillako” da terra que foi ocupada em 2020 no Parque Nacional Los Alerces, na província de Chubut. Sua expulsão dessa terra pública implicará na demolição das casas e dos meios de subsistência dessa população nativa. Uma política que tem uma linha de continuidade com aquela aplicada durante o governo de Macri, também sob a direção de Patricia Bullrich como ministra da Segurança.
Por outro lado, em julho passado, o governo da LLA restabeleceu o antigo nome dos serviços de inteligência, a Secretaria de Inteligência do Estado (SIDE), no lugar da Agência Federal de Inteligência (AFI) que a substituiu durante o governo de Alberto Fernández. Além disso, Milei atribuiu por decreto à SIDE um orçamento para despesas reservadas de 100 bilhões de pesos, triplicando os fundos para seus equipamentos. Tudo o que acontece na agência de inteligência estatal tem a aprovação do conselheiro presidencial Santiago Luis Caputo, sobrinho do ministro da Economia Luis Caputo.
Nesse sentido, o Procurador Geral da Nação, Eduardo Casal, rejeitou o plano de criar uma Procuradoria de Inteligência Especializada (artigo 28 da DNU), que coordenaria os contatos de todo o sistema de justiça federal com a SIDE e seus agentes. Essa possibilidade deixa até mesmo a mídia do establishment desconfortável. O promotor ordenou que essas funções permaneçam na órbita da Secretaria de Coordenação Institucional da Procuradoria Geral da República. Casal afirmou que essa instituição “é um organismo que exerce suas funções com autonomia funcional” e já tem diferentes instâncias para o julgamento de crimes. Outros membros da instituição declararam que a proposta do governo é “um absurdo” porque “aceitar esse projeto implicaria criar uma promotoria baseada na ferrament a de investigação – a inteligência – e não [com base] no tema ou no crime”.
Nos meios de comunicação críticos ao governo, sugere-se que o conselheiro presidencial Santiago Caputo, apontado como responsável pela criação de “fazendas de trolls” que atuam a favor de Milei nas redes sociais, contaria assim com somas multimilionárias de fundos reservadas da SIDE para continuar sua atividade de desinformação e propaganda com dinheiro público.
O Exército poderá patrulhar as ruas
Em paralelo ao avanço do esquema repressivo, o governo legitima a restauração de um culto pseudopatriótico baseado na exaltação das Forças Armadas. Em 9 de julho passado, no Dia da Independência Nacional, o presidente Javier Milei e a vice-presidente Victoria Villarruel desfilaram sorridentes a bordo de um tanque do Exército, à frente de uma coluna de veículos blindados. Mais de 7 mil soldados de diferentes forças participaram do desfile, um gasto supérfluo de difícil justificação em tempos de austeridade e cortes orçamentários. Mas a dimensão simbólica do evento é evidente quando o governo também está apertando os parafusos da repressão contra os protestos.
O novo projeto de Lei de Segurança Interna, enviado pelo Ministério da Defesa ao Congresso em 5 de agosto, dá ao Exército poderes que foram abolidos desde a última ditadura genocida. O objetivo dessa lei é permitir que as Forças Armadas atuem dentro do território para “restabelecer a segurança interna por meio de patrulhamento nas ruas, controle de pessoas e veículos, colaboração em postos de controle fixos ou móveis, vigilância de instalações imobiliárias e prisão em flagrante delito”.
A ideia do Exército patrulhando as ruas das cidades, identificando pessoas e prendendo-as é por si só uma regressão no tempo. Ela reaviva no imaginário de grande parte da sociedade a lembrança da última vez em que isso aconteceu, durante a ditadura, quando os comandos especiais das Forças Armadas tinham rédeas soltas para sequestrar e desaparecer cidadãos, massacrar civis, assassinar clérigos e sequestrar bebês, entre muitos outros crimes contra a humanidade.
O objetivo do governo com esse projeto de lei é ter um instrumento permanente de intervenção militar contra protestos que não exija a declaração prévia de estado de sítio. A construção propagandística do governo de Milei, que aponta os manifestantes como “terroristas”, é uma distorção que falsifica os fundamentos do direito, quando a lei propõe que as Forças Armadas atuem “no caso de ações terroristas que visem aterrorizar a população, sem a necessidade de utilizar um recurso extremo, como a declaração de estado de sítio”. Essa intervenção seria possibilitada pelo Comitê de Crise do Ministério da Defesa, chefiado por Luis Peltri, cujo poder se sobrepõe ao de outros ministérios, como o do Interior e o da Segurança. O projeto de lei estabelece a transfer ência, da Segurança para a Defesa, de aspectos cruciais da direção dos serviços secretos, como “dirigir e coordenar a atividade dos órgãos de informação e inteligência da Polícia Federal, do Serviço Penitenciário e da Polícia Aeroportuária, bem como daqueles pertencentes à Gendarmaria e à Prefeitura [Naval]”. A militarização da repressão social legalmente consagrada para impor a pilhagem econômica a sangue e fogo permitirá que qualquer pessoa que resista por seus direitos ou de seu povo diante da subjugação do poder seja caracterizada como terrorista.
Olhemos brevemente aos antecedentes. Um decreto assinado em 2006 por Néstor Kirchner estabeleceu explicitamente os limites da ação militar e impediu a intervenção em questões de segurança interna. Posteriormente, esse decreto foi modificado durante a presidência de Macri para dar mais poderes ao Exército. E essa mudança foi revogada pelo governo de Alberto Fernández, que restabeleceu a regra anterior.
O programa econômico neoliberal mais radical já aplicado na Argentina, e que mais tarde teve suas derivações, foi o do ministro da Economia José Martínez de Hoz, sob a ditadura de Videla e sua festa macabra e sanguinária. Os princípios declarados por Martínez de Hoz como aspectos centrais de seu plano econômico foram copiados pelos promotores do Consenso de Washington e, por sua vez, adotados por Javier Milei.
Na década de 1970 e no início da década de 1980, esse plano, que deu início ao endividamento feroz do país e, ao mesmo tempo, incentivou uma extraordinária fuga de capitais, teve o apoio inabalável das três Forças Armadas que governavam o país: o Exército, a Marinha e a Força Aérea. O golpe de Estado de abril de 1976 impôs as condições para a implementação dessa política econômica a sangue e fogo, já que o que restava era sufocar economicamente ou eliminar aqueles que resistiam.
Neste primeiro estágio do governo de Javier Milei, a vontade de reproduzir o sistema repressivo característico da ditadura pode ser observada por meio da aprovação de leis que aumentam o poder efetivo dos militares sobre o restante das forças de segurança. Em resumo, a presença contínua do Exército e de outras Forças Armadas na esfera pública equivaleria a um virtual estado de sítio permanente. Uma maneira eficaz de inibir as marchas de protesto e internalizar o sistema repressivo na mente dos cidadãos. E uma violação flagrante e contínua dos direitos humanos.
Leia também: https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/04/protestos-na-argentina.html
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