28 agosto 2024

Uma crônica de Anamaria Vital

Conversa com um trabalhador uberizado de direita
Anamaria Vital   

Eu uso quase que diariamente os serviços da Uber e reconheço que essa empresa me ajuda na minha mobilidade, já que o transporte público na minha cidade é um castigo. E sei que a empresa também acaba por absorver uma massa de desempregados que, não fosse ela, como estariam sobrevivendo hoje em dia? Mas reconhecer isso é uma coisa. Achar que o trabalhador é “empresário” é outra bem diferente.

Tenho antes que reconhecer que aquela massa de desempregados não surgiu do nada. Ela foi estrategicamente criada para ser depois explorada, no processo que Galo de Luta chama de “encurralamento”. As pessoas foram levadas a trabalhar na Uber e no Ifood porque não havia outro meio de conseguirem dinheiro para sobreviver. Claro que, no meio desse contingente de trabalhadores, há os ocasionais, os que fazem dela, da Uber, uma segunda fonte de renda, os que estão ali só para passar o tempo, mas a maioria sobrevive daquilo.


Retornando ao início: eu uso os serviços da Uber quase que diariamente e gosto muito de conversar com os trabalhadores, não só porque gosto de conversar mesmo, não só para o tempo passar mais rápido, mas especialmente como um experimento social, para saber o que os trabalhadores pensam sobre a vida, política, Uber, direitos trabalhistas e sociais. E nossa, hoje a conversa foi difícil.


Conversei com seu Euclenio, um trabalhador uberizado de direita. A conversa começou sobre shoppping centers, passando para lavagem de dinheiro, mercado de ações, passando para os esquemas de pirâmides e marketing de rede até chegar a Pablo Marçal. Isso mesmo. Em pleno Recife, o pleito paulista dominando o debate. Lá veio seu Euclênio dizer que o tal influencer candidato estava escancarando tudo, batendo contra o famigerado “sistema”…


Eu já tinha percebido que se tratava de um senhor de direita quando ele veio falar que o presidente fala suas “besteiras” e as bolsas caem. E já percebi que se tratava de um machista médio, quando veio com seu “mansplaining”, ou em bom português, com sua tentativa de me explicar algo, sem sequer perguntar se eu entendo do assunto, e usando expressões como “entenda”, “você precisa entender”, etc.


Já ali, no começo da corrida, quando ele falou sobre a bolsa de valores, depois de me colocar num lugar inferior, subalterno, no qual ele, como homem branco, poderia me ensinar algo, eu resolvi de imediato me colocar no assunto e nos coloquei no nosso lugar de cidadãos comuns que pouco sabemos sobre o mundo empresarial e suas maldades, porque bolsa subir ou cair por causa de fala de presidente não tem nada a ver com mercado. Tem a ver com maldade mesmo de quem usa ferramentas empresariais para destruir reputações de países. Maldades que sequer temos conhecimento pois se trata de um universo que pouco acessamos, mas que sabemos que existem. Mencionei o caso Americanas para pontuar.


Depois a conversa chegou na clássica frase de quem tem complexo de vira-latas: “brasileiro gosta de cambalacho”. Adoro quando o brasileiro fala sobre si em terceira pessoa. E sim, estou fazendo isso agora como um recurso de ironia. Mais uma vez me coloquei na conversa e educadamente respondi: “poxa, eu já pensei assim também, mas um amigo me chamou a atenção. Não podemos nos depreciar assim. Somos um povo honesto e trabalhador. Eu não gosto de cambalacho e tenho certeza de que o senhor também não gosta. A gente tem que parar de falar da gente assim. Claro que tem gente safada e corrupta aqui, como há em toda parte. Esses gringos mesmo, tocando terror mundo afora…”. Seu Euclênio titubeou, concordou e depois desconcordou e veio com a pérola: “americano é sério”…


Primeiro que eu nem me refiro ao povo dos Estados Unidos como “americanos”. Americanos somos todos nós que vivemos no continente América. O correto é se referir a eles como “estadunidenses”. Mas não entrei nesse detalhe pois a essa altura já estava um pouco afobada, a respiração curta, nossa, pobre de direita me dá nos nervos! Apenas disse que não concordava, que eles não eram sérios, que lógico que tem gente honesta e trabalhadora entre os estadunidenses, como há em todo lugar do mundo, mas que um país que sai fazendo guerras e aplicando golpes mundo afora não pode ser considerado um país sério…


Veio então o tal do Marçal… Aí foi que a bosta virou um boné bem feio com um M de Merda bordado na frente. Seu Euclênio veio me dizer que o tal stand-up-influencer era contra o “sistema” e eu apenas disse que achava absurdo se votar num cara que saiu do nada! Que nunca subiu um morro antes, que nunca esteve preocupado com a população! E seu Euclênio, cujo nome eu poderia confundir com ingênio, mas de ingênua essa gente feito ele não nada, veio me dizer que qualquer um poderia se candidatar. E eu disse que sim, qualquer um pode se candidatar e qualquer um pode subir o morro sem precisar ser candidato, só para ajudar a comunidade e que o tal Pablo, mesmo cheio do dinheiro, nunca fez isso antes.


A certo ponto da conversa, eu falei que eu e ele, Euclênio, não o Marçal, éramos trabalhadores. E aí seu Euclênio me perguntou com o que eu trabalhava: sou servidora pública, respondi. E ele me perguntou o que eu fazia dentro do funcionalismo público e, quando eu disse que era oficial de justiça, ele veio com aquele chavão de quem odeia servidor público e nem sabe o porquê: “você pode até ficar chateada, mas eu vou ter que lhe dizer: servidor público não produz riqueza. Vocês prestam serviço para o povo, mas não produzem riqueza”. E aí, meus queridos, eu juro, eu não tive raiva, porque de fato eu não produzo riqueza, mas sei que tem servidores públicos que produzem sim muita riqueza e mais: o que é riqueza? Porque para mim uma rua limpa por um Gari é riqueza. Uma justiça justa é riqueza, uma vacina é riqueza, um ensinamento de um professor é riqueza. E eu então lhe perguntei: E o senhor, seu Euclênio, que está na iniciativa privada, o senhor produz riqueza?


“Eu produzo sim! Eu consumo!”. Mas oooolhhaaaaaaa! E eu já no calor da discussão, mas mantendo minha classe e elegância, lhe respondi: “Mas eu também consumo, seu Euclênio! 


O senhor presta um serviço tanto quanto eu. Mas sabe pra quem o senhor gera riqueza? Para a Uber!”


Ele se calou. Depois a conversa proseguiu, vários outros absurdos vieram, chega dá cansaço só de relembrar e contar, mas vamos lá… Seu Euclênio, antes de se tornar um trabalhador uberizado, foi dono de um pequeno negócio, seu negócio quebrou e ele não pôde pagar os direitos dos seus empregados. Mas ele estava ali, se comparando com grandes empresas que lucram bilhões de dólares e que, intencionalmente, não pagam os direitos básicos dos seus trabalhadores, como a Uber. Eu falei em férias, que a Uber deveria e teria total condição de pagar um mês de férias a cada um dos motoristas e ele disse que não fazia questão de férias. Mas eu falei que ele não pode tirar a necessidade de todos por ele, pelo jeito dele de viver a vida e ver o mundo. Falei do meu irmão, que trabalha 12 horas por dia num subemprego como fisioterapeuta e que há 3 anos não tira férias. E aí ele veio falar em educação financeira, que se todo trabalhador se organizasse, poderia tirar férias, e eu disse que, de novo, ele não poderia falar por ele, porque cada um tem uma condição de vida diferente: quem tem um filho é diferente de quem tem dois, três, quatro, cinco filhos. Cada situação muda.


E aí falei desses pobres desses entregadores de Ifood, pedalando 16 horas por dia, que mereciam ter férias e ele veio com o clássico: “se soubessem que o lápis pesa menos que a enxada”, como se esses meninos tivessem deixado de estudar por culpa deles, e não por um sistema que os obriga a trabalhar desde cedo, como se esses meninos não tivessem fome, como se essas crianças que são mal alimentadas e têm seu cérebro desenvolvido à base de biscoito recheado pudessem competir em pé de igualdade com quem tem casa, comida, família…


Eu estava ansiosa para chegar em casa, mas o trânsito da Rosa e Silva maltrata (ah se maltrata… se bem soubessem, esses políticos vaidosos jamais iriam querer seu nome vinculado a trânsito) e sim, a Rosa e Silva me fez ter que conversar com seu Euclênio por intermináveis 30 minutos. Um show de horrores, minha gente. Uma falta de consciência de classe absurda. Nos despedimos educadamente e eu agradeci a oportunidade de exercitar meus argumentos e ele pareceu ter gostado da conversa também. Na saída, antes de fechar a porta, mais uma vez eu disse: Eu e o senhor somos trabalhadores! Não vamos nos esquecer disso”.


Espero ter deixado uma sementinha, ainda que pequena, na cabeça do seu Euclênio. Mas confesso que cheguei triste em casa: Eu ainda acredito no brasileiro, mas poxa, tá cada dia mais difícil nos defender de nós mesmos, de um tanto de gente se entregando ao entreguismo de direitos e a um individualismo sem tamanho a troco de nada, absolutamente nada, a não ser de uma ideologia que os acolhe: a do ódio a si mesmo.

*Poeta, autora de "Entre dois corpos"

Um comentário:

Àna disse...

Divergir faz parte da vida, porque nenhum de nós é igual ao outro, nas divergir sobre temas básicos, sobre direitos humanos e sociais, sobre solidariedade e senso de união é outra coisa... Essas pessoas se dizem patriotas mas xingam seu próprio povo e querem mesmo é ver as pessoas pobres na lama, enquanto batem continência pra bandeira estadunidense. Esse é um reflexo do capitalismo, a destruição de absolutamente tudo, inclusive do senso de coletividade.