Angeli e o desenho de humor como obra de arte e crônica contemporânea
Enio Lins
Desde ontem, as editorias culturais nas mais variadas mídias têm aberto espaços para a notícia de que o Instituto Moreira Salles incluiu em seu acervo permanente de obras de arte parte do trabalho do cartunista, chargista e quadrinista Angeli. O próprio artista iniciou a seleção dos desenhos em 2018 e, a partir de 2022, a missão está sendo continuada por sua companheira, e artista plástica, Carolina Guaycuru. O primeiro lote é composto por 2.100 itens, contemplando 700 tirinhas, 700 charges e 700 ilustrações originais e esboços.
CRONISTA DO TRAÇO
Arnaldo Angeli Filho, paulista, completará 68 anos em 31 de agosto deste ano. Firmou-se, desde os anos 70, como um dos principais artistas gráficos do Brasil no campo do humor desenhado. Criou personagens impactantes como a noctívaga e devassa Rê Bordosa, os roqueiros da terceira idade Wood e Stock, e outros tantos ícones. Depois de cinco décadas de trabalhos publicados, anunciou seu afastamento da lide por conta de uma condição neurodegenerativa, a afasia, que prejudica a comunicação em todos os campos (o ator americano Bruce Willis, quase ao mesmo tempo, informou que se afastava do mundo cinematográfico por padecer do mesmo problema).
MEIO SÉCULO DE LUTAS
Nos idos de 1973, ele começou a publicar seus desenhos, e a partir de 1975 tornou-se chargista fixo na Folha de São Paulo. Participou também da chamada “imprensa alternativa” como colaborador permanente em periódicos de esquerda como o jornal Movimento. Ao longo desse tempo, seu trabalho foi sendo cada vez mais reconhecido, vencendo, por 16 anos ininterruptos, entre 1997 e 2012, o prestigiado Prêmio HQ Mix na categoria “Melhor Desenhista de Humor Gráfico”. Alternando a crítica política com a crônica de costumes, foi centrando seu foco e sua pena na classe média intelectualizada e seus dramas e desafios comportamentais. A libertária Rê Bordosa, criada em 1984, é seu maior sucesso e cresceu tanto que o autor resolveu interromper sua publicação, em 1987. A controvertida personagem, entretanto, reencarnou aqui e ali, inclusive no filme de animação “Wood & Stock: Sexo, Orégano e Rock'n'Roll” (longa metragem com a técnica da “massinha”) tendo Rita Lee como a dubladora da anti-heroína.
LOS TRÊS AMIGOS
Outro sucesso é a tríplice parceria em “Los Três Amigos”, obra a seis mãos desenhada junto com Glauco e Laerte, com cada um caricaturando a si próprio como personagem: “Angel Villa”, “Laerton” e “Glauquito”. Lançado na revista Chiclete com Banana em 1985, ganhou revista própria e depois incorporou um quarto amigo, Adão Iturrusgarai. A morte trágica de Glauco Vilas-Boas (assassinado por um frequentador de sua comunidade espiritual, em 2010) matou o quarteto de anti-heróis, uma das mais instigantes e originais publicações dos quadrinhos brasileiros. E, cá entre nós, tive a honra de compartilhar com Angeli e Glauco duas memoráveis farras, no começo dos anos 90: uma no circuito Maceió & Marechal Deodoro, entre o saudoso bar Casablanca e o eterno Cumbe, e outra pela pauliceia desvairada, iniciando no Sesc Pompeia (numa das premiações HQ Mix) e se estendendo por ruas e bares dos quais não me lembro mais, a não ser das presepadas dos impagáveis Angeli e Glauco.
PRESERVAÇÃO GARANTIDA
Enfim, a iniciativa do Instituto Moreira Salles revive a obra de Angeli, quando o autor não mais tem condições de produzir, perenizando as criações de um grande artista gráfico e um questionador, um cronista comportamental e ideológico da contemporaneidade. Parabéns ao Instituto Moreira Salles, viva o Mestre Angeli!
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