Vinícius e a eterna desventura de viver
Vinicius de Moraes marcou a música brasileira com seu empenho cuidadoso no artesanato literário, adequando discursos melódicos e verbais, através de uma prática apaixonada da vida como a “arte do encontro”
Railson Barbosa/Le Monde Diplomatique
Há 111 anos nascia Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes, mais conhecido como Vinicius de Moraes. Compositor, poeta, cantor, dramaturgo, carinhosamente apelidado por outro grande da música brasileira, Tom Jobim, de “Poetinha”, marcou a música brasileira e a elevou ao seu patamar mais alto, com seu empenho cuidadoso no artesanato literário, adequando discursos melódicos e verbais, através de uma prática apaixonada da vida como a “arte do encontro”.
Nascido no bairro da Gávea, botafoguense de coração, cresceu entre os bairros de Botafogo e Ilha do Governador. Filho de um funcionário público, que nas horas vagas era violinista e poeta, com uma pianista amadora, segundo de quatro filhos, teve seu primeiro contato com o canto quando ingressou em, 1924 no tradicional Colégio Santo Inácio, em Botafogo, participando do coral. Concomitantemente, desenvolveu seu dom criativo montando pequenas peças de teatro. Suas primeiras composições surgiram ao lado dos amigos Haroldo e Paulo Tapajós, a dupla “Irmãos Tapajós”, que posteriormente seriam marcadas definitivamente por canções conhecidas como “Loura Morena”, “Doce Ilusão” e “O beijo que você não quis dar” (em parceria com Haroldo), como também por “Canção da noite” (em parceria com P aulo).
Vinicius estudou Direito na Universidade do Catete, depois línguas e literaturas inglesas em Oxford. Quando retornou ao Brasil, em 1941, se tornou crítico de cinema no jornal “A Manhã”. Dois anos depois ingressa na carreira diplomática, após aprovação no concurso para o Ministério das Relações Exteriores, obtendo sólida formação e carreira diplomática, viajando para Uruguai, Estados Unidos, Espanha e França. Mesmo com seus compromissos diplomáticos e diversas viagens, Vinicius não perdeu contato com a cultura brasileira, muito menos esqueceu da sua vocação artística e musical.
A partir dos anos de 1950, sua carreira musical de fato começa ganhar fama, quando suas canções começaram a ganhar voz nos diversos artistas espalhados pelo país, além da admiração e da amizade que teve com Tom Jobim. A partir dos anos de 1960, viveu seu auge musical, com parcerias nacionais e internacionais, destacando-se aquelas com Baden Powell, Francis Hume, João Gilberto, Chico Buarque, Carlos Lyra, sem contar as então promessas Maria Bethânia e Gilberto Gil. A parceria de sucesso com Toquinho viria na década seguinte, junto com a amizade do cantor e compositor Chico Buarque, marcada por canções como “Tarde em Itapoã”, “Aquarela” (quem nunca cantou essa na escola na década de 1990?), “A Casa”, “As Cores de Abril”, e outras centenas de canções escritas e reproduzidas.
“Encontrei novamente um parceiro pra valer, e ele é um jovem paulista de 24 anos, de origem italiana, com uma pinta de menestrel medieval, chama-se Antonio Pecci Filho, mas é conhecido pelo apelido de Toquinho”, viria a anunciar Vinicius em uma de suas crônicas.
Vinicius foi herdeiro direito do projeto modernista, estilo surgido no século XX, num contexto marcado por tensões políticas entre as potências europeias, caracterizado pelo gênero transgressor, experimentalista, antiacadêmico e desconstrutivista. O autor agregou formas clássicas do soneto ao samba e a suas notas, adaptou personagens clássicos da literatura grega com a realidade popular brasileira do século XX, criando um verdadeiro “sincretismo cultural” que envolve música, poesia e arte. O movimento da bossa nova, gênero musical marcado por uma modernização e afirmação da tradição musical brasileira, ao reafirmar o samba como uma grande referência, sem excluir o diálogo com o jazz norte-americano, por exemplo, teve participação direta do “poetinha”.
Orfeu Negro
“Orfeu Negro” estreou em 1959, um filme ítalo-franco-brasileiro dirigido por Marcel Camus e adaptado por Camus e Jacques Viot, a partir da peça Orfeu de Conceição de Vinícius de Moraes. A trilha sonora é de Tom Jobim e Luiz Bonfá. Vinícius e Antônio Maria também incluíram músicas. O enredo é inspirado na mitologia grega, a história de Orfeu e Eurídice, adaptada e encenada no Brasil, em uma favela do Rio de Janeiro, durante a época do carnaval. O impacto do filme foi além do que se esperava e marcou muitas gerações: o artista americano Jean-Michel Basquiat citou o filme como uma de suas primeiras inspirações; o ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama também declarou que o filme era o favorito de sua mãe. O filme ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960, representando a França, curiosamente. Ou seja, um filme em português, filmado no Brasil e com um ator brasileiro foi premiado como uma produção francesa. Deixando um pouco essa polêmica, a película é a primeira produção em língua portuguesa a ganhar o Oscar e a única na categoria de melhor filme estrangeiro.
O legado de Vinicius
Na história, Vinicius teve seu nome cunhado eternamente. Da parceria com o amigo Tom Jobim, a composição “Eu sei que vou te amar”, lançada em 1959, inspirou milhares de declarações de amor por gerações, marcada pelas inúmeras versões de grandes nomes da MPB no desenrolar da história. A música “Garota de Ipanema”, lançada em 19 de março de 1964, canção letrada por ele e composta por Tom Jobim, é considerada a segunda canção mais executada na história da música mundial, além de mais de quinhentas versões com inúmeros intérpretes, nascida dois anos antes quando, durante uma caminhada tranquila pela orla da praia de Ipanema, Vinicius de Moraes e Tom Jobim avistaram uma bela moça que caminhava pela areia até o mar. A cena trivial chamou tanto a atenção que ambos os compositores prontamente decidiram compor uma canção, eternizando esse momento tanto na memória quanto na arte.
Na visão de Vinicius, a vida era “a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Ou seja, a partir dessa perspectiva o esforço para tornar a vida mais bela e única se traduz num soneto contínuo, marcado pelos contrastes e alternâncias, como em seu “Soneto de Separação”, que em um determinado verso traz a antinomia “do riso fez-se o pranto”. Do mesmo modo, procura-se eternizar o momento, como em seu “Soneto de Felicidade” quando deseja “que seja infinito enquanto dure”, na intenção de que a história possa ser contada e apreciada de maneira fluída e contínua, mas que antes de tudo seja vivida de maneira intensa.
Railson Barboza é Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF). Imortal da Academia Fluminense de Letras.
Mais sobre Vinícius https://lucianosiqueira.blogspot.com/search?q=Vin%C3%ADcius+de+Moraes
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