13 março 2025

Cláudio Carraly opina

Projeto China 2025: A Batalha pela Hegemonia Tecnológica Mundial
Cláudio Carraly* 

Em um cenário global onde a tecnologia se consolida como o principal vetor de poder geopolítico, a China delineou uma trajetória ambiciosa para liderar as indústrias do futuro. O plano Made in China 2025 – MIC 2025, lançado em 2015 pelo Conselho de Estado chinês, emerge como um projeto estratégico fundamental para transformar o país em uma superpotência de alta tecnologia até o ano de 2025. Um dos pilares centrais deste plano é a drástica redução da dependência de importações em setores tecnológicos críticos, com a meta de alcançar uma autossuficiência de 70% até 2049, conforme aponta um relatório do Center for Strategic and International Studies – CSIS. 

Esta análise, fundamentada em dados de instituições renomadas como a Organization for Economic Cooperation and Development e em entrevistas com especialistas como Scott Kennedy do CSIS e Paul Triolo do Albright Stonebridge Group, examina o estado atual das tecnologias prioritárias elencadas e definidas pelo MIC 2025, além dos consideráveis obstáculos que se interpõem no caminho da China e as perspectivas em um contexto de crescentes tensões globais. 

A questão central que persiste é: o MIC 2025 representa um verdadeiro trampolim para a liderança tecnológica global, ou se configura como um plano vulnerável às sanções internacionais e às próprias limitações internas do gigante asiático? A resposta a esta indagação complexa reside na análise aprofundada de seis setores-chave, que não apenas moldarão o futuro tecnológico da China, mas também poderão redefinir a ordem econômica mundial em curso:

1. Eletrônicos Avançados: A Corrida Crítica pelos Semicondutores

Contexto Atual: A dependência chinesa de semicondutores importados é flagrante. Em 2022, as importações atingiram a cifra de 415 bilhões de dólares, superando os gastos com petróleo, de acordo com a Semiconductor Industry Association. Para mitigar essa enorme vulnerabilidade, o governo chinês estabeleceu o "Big Fund" (Grande Fundo), um programa estatal robusto com um orçamento previsto até 2030 do montante de 150 bilhões de dólares. O foco principal é a expansão da capacidade de produção doméstica através da construção de fábricas de semicondutores e o investimento maciço em pesquisa e desenvolvimento.

Progresso do Programa: Empresas chinesas demonstraram grandes avanços técnicos, produzindo chips de 7 nanômetros em 2023 utilizando a técnica de multipatterning. No entanto, essa abordagem eleva os custos de produção em cerca de 50% em comparação com a líder de mercado, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company Limited – TSMC, devido à impossibilidade de adquirir máquinas EUV, que é uma tecnologia usada na indústria de semicondutores para a fabricação de circuitos integrados, devido às restrições impostas pelos EUA e outras sanções ocidentais. A Huawei, em colaboração com a empresa chinesa SMIC, desenvolveu o chip Kirin 9000s, um feito notável diante das restrições internacionais. Contudo, a produção permanece limitada a cerca de 10 milhões de unidades anuais, contrastando com a capacidade da Apple, que produz com apoio da empresa de Taiwan, aproximadamente 200 milhões de chips anualmente.

Perspectivas e Estratégias: As metas ambiciosas incluem dominar 70% da demanda doméstica por chips de 14 nanômetros até 2025, um avanço significativo em relação aos atuais 30%, e investir 2,8 bilhões de dólares em carbeto de silício até, no máximo, 2030, um material crucial para veículos elétricos e outras aplicações de alta potência. A China pensa ativamente em rotas alternativas à tecnologia ocidental, acelerando o desenvolvimento de processos de fabricação próprios e buscando reduzir a dependência da propriedade intelectual ocidental. No entanto, a complexidade da indústria de semicondutores e a profundidade da cadeia de suprimentos, que até as sanções impostas eram globais, tornam a autossuficiência um desafio monumental. 

2. Robótica e Máquinas de Precisão: Automatizando o Futuro da Manufatura

Andamento do Projeto: A China já se destaca como o maior mercado mundial de robôs industriais, respondendo por 45% das vendas globais em 2023. Entretanto, persiste uma dependência significativa de importações, especialmente em robôs de alta precisão, que representam 60% do consumo interno chinês.

Diminuindo os Custos: Empresas chinesas como a SIASUN têm demonstrado capacidade de inovação em custo-benefício-eficiência, reduzindo o preço de cobots – robôs colaborativos, para 8 mil dólares, tornando-os competitivos em mercados emergentes em comparação com os 20 mil dólares cobrados por rivais ocidentais. A Midea, gigante de eletrodomésticos, implementou o sistema M.IoT (interconexão das coisas, comunicação entre objetos e dispositivos inteligentes) em suas linhas de produção automatizadas, alcançando uma redução de 40% nos defeitos de fabricação, demonstrando o potencial da integração de tecnologias digitais na manufatura.

Perspectivas e Estratégias: O plano MIC 2025 almeja estabelecer 150 "fábricas inteligentes" até 2025, impulsionadas por tecnologias como 5G e edge computing (computação de borda, que realiza ações em tempo real à margem da rede). Para o horizonte de 2030, a China ambiciona desenvolver robôs com capacidades sensoriais avançadas, como o tato, para tarefas complexas como a montagem de microchips, por meio de parcerias, como a colaboração entre a Estun Robotics e a Academia Chinesa de Ciências, a estratégia de expansão para mercados externos é crucial, visando não apenas atender à demanda interna, mas também competir globalmente e reduzir a dependência mundial da tecnologia robótica ocidental, suprindo as possíveis  necessidades tecnológicas dos países pertencentes à “Nova Rota da Seda” e também aos BRICS. 

3. Crescimento da Indústria Aeroespacial: Conquistando os Céus

Crescimento Condicionado: enquanto o avião comercial COMAC C919 atrai um volume expressivo de pedidos, 1.200 aviões apenas em 2023, a aeronave ainda depende de componentes estrangeiros para cerca de 95% de sua composição, e por conseguinte, limita profundamente um crescimento sustentável das exportações, seja a médio e longo prazo.

Situação Atual: A Corporação de Ciência e Tecnologia Aeroespacial da China demonstra notável capacidade no setor espacial, realizando 64 lançamentos de foguetes aeroespaciais em 2023, incluindo o módulo Mengtian para a estação espacial Tiangong. Empresas privadas como a Galactic Energy também emergem, oferecendo custos de lançamento 30% inferiores aos da celebrada empresa aeroespacial SpaceX do bilionário Elon Musk, indicando um ecossistema espacial chinês em franca expansão e diversificação e com custos monetários e ambientais absurdamente menores.

Perspectivas e Estratégias: A China projeta a ambiciosa “Constelação Guowang”, com 13 mil satélites, para rivalizar com o monopólio da Starlink no fornecimento de internet via satélite até 2030. No setor de aviação comercial, o desenvolvimento do COMAC C929, aeronave widebody (aviões de fuselagem larga), visa conquistar 10% do mercado global até 2035. Contudo, o setor aeroespacial e de aviação chinês enfrenta os mesmos desafios anteriores, ou seja, dependência de tecnologias estrangeiras para componentes críticos como turbinas de aeronaves e sistemas aviônicos avançados. O desenvolvimento autônomo destas tecnologias representa um obstáculo complexo e de longo prazo, mas que já começa a ser trabalhado com a abertura de novas plantas industriais focadas na solução do problema.

 

4. Veículos Elétricos – VEs: Liderando a Revolução da Mobilidade Sustentável

Crescimento Rápido e Entrada no Mercado Global: A China consolidou uma liderança incontestável no mercado mundial de veículos elétricos. A empresa BYD, por exemplo, vendeu 3,2 milhões de VEs em 2024, segundo a BloombergNEF, superando em muito a Tesla e se tornando a maior vendedora mundial da categoria.

O Futuro Está Próximo: Empresas chinesas como a XPeng avançam no desenvolvimento de tecnologias de ponta, testando carros autônomos (sem necessidade de pilotos)  de nível 4 em Guangzhou. No setor de baterias, a CATL, líder global, lançou a bateria Qilin, com uma densidade energética de 255 Wh/kg, superando em 15% a eficiência das baterias LFP da concorrente Tesla Motors.

Perspectivas Futuras: A China almeja que 40% das vendas domésticas de veículos sejam de VEs até 2025, e já para 2030, o país busca liderar a transição para baterias de estado sólido, consideradas a próxima geração da tecnologia de armazenamento de energia, por meio de parcerias estratégicas como a colaboração com a QuantumScape, que tem como investidores Bill Gates e Volkswagen. A expansão global agressiva é uma prioridade, com o objetivo de dominar mercados emergentes antes que concorrentes consigam reduzir seus custos de produção e competir em qualidade e preço.

 

5. Inteligência Artificial: Rumo à Vanguarda da Inteligência Artificial Global

Contexto: A China tem se destacado no cenário global de pesquisa em Inteligência Artificial – IA, sendo responsável por 28% das publicações científicas na área, de acordo com a Stanford HAI em 2023. No entanto, o país enfrentou restrições na compra de chips de alto desempenho devido à pressão do governo dos Estados Unidos sobre a empresa NVIDIA, especialmente em relação às Graphics Processing Units – GPUs essenciais para o desenvolvimento de modelos avançados de IA.

Em resposta, a China surpreendeu o mundo com a criação do DeepSeek, que demonstrou desempenho superior utilizando chips mais antigos e com menor consumo de energia em comparação aos concorrentes. Essa inovação evidencia a capacidade chinesa de adaptação tecnológica diante de barreiras comerciais e pode representar um avanço estratégico na redução da dependência de semicondutores ocidentais. O sucesso do modelo do DeepSeek pode estimular novas abordagens para otimizar a eficiência dos sistemas de IA, abrindo espaço para criatividade diante da necessidade e olhar de forma diferenciada as dificuldades impostas.

Perspectivas e Estratégias: A China vislumbrava um mercado de 150 bilhões de dólares em receitas com IA até 2030, isso antes do abalo causado pelo DeepSeek, agora a presença no mercado mundial deverá ser infinitamente maior. Os novos focos de abordagem dessas aplicações serão em áreas estratégicas como cidades inteligentes, medicina e ciência de ponta.

 

6. Uma Jornada Tecnológica: Uma Via Complexa e de Longo Prazo

A China avança de forma determinada em sua jornada tecnológica, impulsionada por investimentos massivos e uma visão estratégica de longo prazo. Contudo, o país enfrenta desafios críticos que podem moldar o sucesso ou o fracasso do plano MIC 2025 e sua ambição de hegemonia tecnológica global:

Sabotagem Geopolítica: A "guerra tecnológica" deflagrada pelo Ocidente, especialmente através das sanções americanas, impõe um obstáculo significativo. Pode acarretar à China uma defasagem de 5 a 7 anos em chips de ponta, isso não é trivial e pode impactar o ritmo de inovação em diversos setores dependentes de semicondutores avançados. A resiliência chinesa reside na busca por autossuficiência, mas o caminho é árduo. Estratégias de contorno incluem o desenvolvimento de tecnologias alternativas, o investimento em design de chips e a busca por parcerias com países que discordem das sanções unilaterais impostas. No entanto, a eficácia dessas estratégias em curto e médio prazo ainda é incerta.

Desafios de Inovação Pioneira: Embora a China se destaque em patentes, a constatação de que apenas 5% são consideradas "altamente inovadoras" pela World Intellectual Property Organization – WIPO  levanta questões sobre a natureza da inovação chinesa. Predomina uma inovação incremental, focada em aprimorar tecnologias existentes e em aplicações práticas e de mercado, em detrimento da inovação disruptiva, que cria tecnologias e mercados radicalmente novos. Fatores como o sistema de pesquisa e desenvolvimento chinês, mais focado em execução e escala do que em experimentação radical, podem contribuir para essa limitação. A transição de "imitadora" para liderança em criações de ponta representa um desafio cultural e estrutural complexo para o futuro da liderança da China.

O Peso da Demografia Desfavorável: A demografia chinesa apresenta um cenário desafiador a longo prazo, a projeção do Banco Mundial de uma queda de 10% na população ativa até 2035 terá implicações profundas. A diminuição da força de trabalho pode impactar a capacidade de inovação, a produtividade industrial e o crescimento econômico geral. A aposta na automação e na IA surge como uma resposta estratégica para mitigar os efeitos da demografia desfavorável, mas a efetividade dessas tecnologias em compensar integralmente a perda de força de trabalho e impulsionar a inovação em um contexto demográfico adverso é auspiciosa, mas ainda é uma incógnita.

Tensões Globais e Fragmentação Tecnológica: O avanço tecnológico chinês, especialmente em setores estratégicos, gera tensões geopolíticas crescentes, a reação de países ocidentais, principalmente os ligados à Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, liderados pelos Estados Unidos, manifesta-se em sanções, restrições comerciais e políticas industriais limitantes, como o CHIPS Act americano e iniciativas similares na Europa.

 

Essa dinâmica acentua o risco de fragmentação tecnológica global, com a formação de blocos tecnológicos distintos e potencialmente isolados. A China busca fortalecer parcerias com países em desenvolvimento e do Sul Global, mas a crescente polarização tecnológica mundial representa um desafio para um crescimento tecnológico homogêneo globalmente, e para a própria ideia fundamental de globalização. Apesar dos obstáculos consideráveis, Pequim demonstra uma determinação inabalável em prosseguir com o MIC 2025 e suas ambições tecnológicas, embora o plano possa não garantir uma vitória imediata e incontestável na batalha pela hegemonia tecnológica, ele inegavelmente está redefinindo as regras do jogo e alterando o panorama tecnológico global.  

No entanto, a trajetória da China enfrenta desafios internos e externos significativos. Internamente, o país precisa lidar com gargalos na inovação, como a dependência de tecnologia estrangeira em setores estratégicos, dificuldades na retenção de talentos e uma burocracia que pode retardar avanços. Além disso, o sistema regulatório chinês, ao mesmo tempo em que impulsiona a centralização do desenvolvimento tecnológico, também pode gerar entraves para um ecossistema mais dinâmico e inovador. Externamente, as restrições comerciais impostas pelo Ocidente, especialmente pelos Estados Unidos, colocam barreiras ao acesso a tecnologias críticas. Se Pequim não conseguir desenvolver uma base industrial autossuficiente a tempo, pode ficar refém de soluções paliativas em vez de alcançar uma liderança sustentável. 

Contudo, uma certeza emerge com clareza, o mundo não pode mais ignorar a China como uma força motriz e uma arquiteta fundamental de uma nova ordem tecnológica global em construção. Independentemente dos desafios, Pequim já conseguiu alterar o equilíbrio de poder no setor e continuará a moldar os rumos da inovação mundial, seja como um concorrente direto do ocidente, seja como um catalisador de novos paradigmas tecnológicos.  

Historicamente, a China foi, por milênios, a vanguarda da inovação global. O país criou invenções fundamentais como a bússola, o papel, a impressão e a pólvora, avanços que moldaram civilizações e redefiniram o curso da humanidade. Seu declínio tecnológico nos séculos recentes foi mais uma exceção do que a regra, resultado de fatores históricos e geopolíticos específicos, agora, com a ascensão do MIC 2025 e o investimento agressivo em tecnologia de ponta, a China está simplesmente retomando o papel que desempenhou por grande parte da história humana. O mundo pode se surpreender com a velocidade desse avanço, mas, à luz da trajetória chinesa, a verdadeira surpresa seria se a nação não estivesse reivindicando novamente seu lugar na vanguarda da inovação. A nova ordem tecnológica global não é um acaso, mas a continuação de um legado que sempre colocou a China entre os protagonistas do progresso.  

*Cláudio Carraly - Advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco.

Leia também: A China e os dois anos da Iniciativa de Civilização Global https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/china-intercambio-e-civilizacao.html

Um comentário:

Anônimo disse...

Um artigo carregado de informações profissionalmente técnicas e precisas, sem achismo ou impressões pessoais, que muito contribui para a construção de opiniões reais e bem fundamentadas.Grata.