Carrero e Scliar
Cícero Belmar
Um dia desses, abrindo a pasta de arquivos com documentos pessoais, que conservo de forma analógica, desdobrei uns papéis, e reencontrei algo cuja importância jamais será medida: uma carta.
Foi escrita
de próprio punho, como se costuma dizer para atestar a autenticidade de um
documento. E em letra cursiva, para sublinhar a importância dele. Na margem
esquerda superior do papel, o nome timbrado do remetente: Moacyr Scliar.
Endereçada a
mim, a carta é de fevereiro de 2003. Há apenas 22 anos, portanto, era natural e
comum escrever e enviar cartas pelos Correios. O WhatsApp ainda não era essa
ferramenta única e exclusiva de hoje em dia.
Ainda bem que
se escreviam cartas. Tenho um tesouro. O teor da carta de Moacyr Scliar e a
história que está por trás dela são pedras preciosas feitas de um material
muito raro, a generosidade.
E ela, a
generosidade, começa a partir de outra: foi através do grande escritor
pernambucano Raimundo Carrero, a quem chamo Carrerão pela grandeza da alma e da
obra literária, que cheguei a Scliar.
Quando
escrevi o meu primeiro livro de contos, que tem como título Tudo na Primeira
Pessoa, entreguei um exemplar a Carrero, na esperança de ser lido. Tinha a
expectativa de saber o que o mestre que influenciou muitos escritores de minha
geração, em Pernambuco, achava daqueles textos.
Um dia,
encontrei Raimundo Carrero num evento de literatura. “Você é um escritor”, ele
me disse. Eu perguntei se ele sugeriria que eu enviasse o livro para outras
pessoas. “Para meu amigo Moacyr Scliar”.
O próprio
Carrero se prontificou a informar a Scliar sobre o livro e depois me deu sinal
verde. “Pode enviar, ele está esperando”. Do Recife, mandei o exemplar pelos
Correios, para Porto Alegre. Pense no estado em que ficaram as minhas unhas.
Semanas
depois, quando eu tinha apenas a certeza de que o livro fora enviado, recebi a
tal carta. Lembro-me perfeitamente do momento em que ela chegou a minhas mãos;
parecia eu ter ganho um prêmio. A carta está datada de 11 de fevereiro de 2003.
Moacyr Scliar
disse coisas muito bacanas, que deixariam qualquer escritor, iniciante, como
era o meu caso, ou mesmo veterano, lisonjeados. Agir como Carrero e Scliar, não
tenho dúvidas, é um dom. Tão grande quanto o poder literário de cada um deles.
Respondi
agradecendo pela leitura, pelo retorno, pelo apoio. Eu não conheci pessoalmente
o escritor gaúcho e acho que, por timidez e insegurança, não mantive outros
contatos com ele. Com Carrero, tenho-o sempre por perto. É um grande escritor,
um dos maiores deste Brasil. Um ser humano imenso. E meu amigo.
Quando
reencontrei a carta, mandei colocá-la num quadro, para ficar como imagem
sagrada na sala do meu apartamento. Agora, quando olho para o quadro, é com a
gratidão dos que devem. Gosto desta dívida.
Foi a partir
desse ato de generosidade de Carrero e de Scliar que eu, um escritor iniciante,
um repórter que se aventurava a escrever ficções, senti mais segurança de me
autodefinir como escritor.
Eles
endossaram aquilo que, na realidade, eu era. Hoje, entendo que a generosidade é
uma virtude quase espiritual porque tem o poder místico dos impulsos e das
fagulhas.
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Leia: Leitura instantânea e imperfeita https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/china-russia-no-contexto-global.html
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