Graciliano Ramos e o texto no tempo das redes
Literatura
caminhou do escritor sem biografia à biografia sem escritor
Sérgio
Rodrigues/Folha de S. Paulo
"Os dados biográficos é que não posso arranjar, porque não tenho biografia", escreveu Graciliano Ramos em 1937 a um tradutor argentino que lhe pedira apenas uma burocrática minibiografia, dessas que saem em orelhas de livros.
Ocorre que o
grande escritor alagoano (1892-1953), um dos maiores estilistas da língua
brasileira em qualquer tempo, tinha alergia a tarefas textuais burocráticas. A
minibio logo virou uma boa história.
Depois de
resumir o atribulado percurso pessoal e profissional a que foi impelido por
talento literário e convicções políticas —um percurso com a cara da primeira
metade do século 20—, o escritor completa: "Evidentemente, isso não dá uma
biografia. Que hei de fazer?".
Sempre me
lembro de Graciliano dizendo não ter biografia quando penso na importância cada
vez maior atribuída aos dados biográficos de quem escreve —ou faz qualquer
coisa criativa— em nosso tempo.
Mais do que
dados biográficos, o que a nova comunicação digital parece querer de nós é a
própria vida, ou pelo menos um simulacro palatável dela. Influenciadores de nós
mesmos, ser escritor é compartilhar nas redes uma rotina de escritor.
O texto?
Secundário, talvez dispensável. Sempre poderá ser terceirizado —e vem sendo
cada vez mais— a robôs ávidos de recursos naturais e imbatíveis em artimanhas
artificiais.
Em algum tempo
só vai nos restar a nossa história de vida mesmo. Pelo menos até o dia em que
for impossível distinguir uma "história de vida" real de uma
inventada, e a própria ideia de realidade se dissolver no tanque de ácido de
uma IA onipresente.
Nesse dia,
talvez a gente se lembre —se ainda houver a gente para se lembrar— do tempo em
que um autor de romances extraordinários, daqueles que fazem um país, negava
ter biografia e acrescentava: "Eu devia enfeitar-me com algumas mentiras,
mas talvez seja melhor deixá-las para romances".
Que conste dos
autos: não faltou biografia —de verdade, no caso— a Graciliano Ramos. A
começar por sua "revelação" em circunstâncias peculiares, quando era
escritor de gaveta e estava prefeito da pequena Palmeira dos Índios (AL).
Publicados, os
relatórios de gestão que o escritor enviara ao governador Álvaro Paes entre 1929
e 1930 revelaram ao país aquela mistura de estilista brilhante e eticista feroz
—e vice-versa– que era o futuro autor de "São Bernardo" e "Vidas
Secas".
"Se eu
deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e
lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me", escreveu o homem ao
governador.
Sim,
Graciliano era aquilo que hoje quer dizer pouco, um comunista, só que em seu
caso isso dizia muito. Foi preso pela polícia de Getúlio Vargas em 1936,
experiência transformada em grande prosa nas suas póstumas "Memórias do
Cárcere", mas só se filiou ao PCB alguns anos mais tarde.
Eis uma
biografia, sem dúvida alguma. Graciliano a desdenhava por modéstia e graça
autoirônica, claro, mas também por saber que a arte é sempre absurdamente,
incomparavelmente maior. Ou será que não é?
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