Você já percebeu que estão usando IA para antecipar a disputa eleitoral?
Big Techs lucram com a viralização de conteúdos criados por IA. A campanha de 2026 já começou nos bastidores digitais e o debate precisa acontecer agora
Camila Modanez, Ergon Cugler/Vermelho
Com vídeos cada vez mais realistas, o Veo 3 é a nova atração do Google para o mercado de inteligência artificial. Lançado em maio de 2025 durante o evento Google I/O, ele funciona a partir de simples comandos de texto, gerando vídeos com integração de imagem, voz, sotaques e efeitos sonoros. A impressão é de estar vendo uma pessoa real falando, gesticulando, reagindo. O lançamento representa um divisor de águas para as ferramentas do tipo, não apenas pela qualidade técnica, mas, principalmente, pela capacidade de imitar vozes humanas de forma nativa e sincronizada com os movimentos dos lábios.
Trata-se de uma virada no que se entende por audiovisual: o que antes exigia estúdios, roteiros, câmeras e edições manuais agora pode ser produzido em minutos por qualquer pessoa com acesso a um modelo de IA. Não à toa, nas últimas semanas, o Instagram e o TikTok foram tomados por vídeos gerados com o Veo 3. Um dos casos mais emblemáticos foi o da personagem “Marisa Maiô”, criada pelo ator e ilustrador Raony Phillips. Com humor refinado e linguagem popular, a personagem satiriza programas televisivos a partir de diálogos absurdos, sotaques caricatos e efeitos de áudio que aumentam a comicidade. Nesse estilo, os vídeos da Marisa Maiô alcançaram milhões de visualizações e renderam colaborações publicitárias com marcas como o Magazine Luiza. Isso mostra que o impacto dessas novas tecnologias não se limita ao campo da inovação, mas já se converte em capital cultural e econômico.
Além do humor, já é possível mapear dezenas de canais dedicados a conteúdo satírico ou jornalístico amador que vêm usando o Veo 3 para produzir “entrevistas de rua”, simulações de debates e quadros de “infoentretenimento” que misturam realidade com invenção. Essas produções, mesmo quando feitas de maneira amadora, viralizam com facilidade justamente por parecerem verdadeiras. E é aqui que a realidade cobra caro: à medida que o uso do Veo 3 se massifica, começam a surgir conteúdos que extrapolam o limite da comédia e passam a operar como armas culturais. A garota gerada por IA diz para outro personagem que parece ser seu pai: “Eu sou feminista, quero os meus direitos”. Seu suposto pai responde em tom satírico: “Vá lavar uma louça”. E ela finaliza: “Aff, ninguém me entende aqui em Xique-Xique, Bahia”.
Mas não é apenas de estereótipos do feminismo que esses vídeos se tornam virais. Já circulam vídeos que, com estética de paródia, retratam petistas como “deficientes mentais”, “burros” ou “manipulados”, reforçando estigmas sobre eleitores e militantes de esquerda. Outros usam o mesmo modelo para caricaturar o Nordeste como um território miserável, sujo, atrasado, dentre outros estereótipos históricos usados para desumanizar populações e justificar desigualdades. Sem contar os que retratam pessoas com deficiência como “mimizentas” ou que ilustram pessoas transsexuais como sendo promíscuas. São vídeos que zombam de grupos marginalizados, reforçam preconceitos e alimentam visões de mundo autoritárias, tudo sob a fachada do humor. O problema é que esse humor não está desconectado da política. Ele é, muitas vezes, a sua porta de entrada mais sorrateira.
São formas visuais de preconceito que, por virem embaladas em estética de humor e edição “moderna”, parecem inofensivas, mas operam com força brutal no imaginário coletivo. Rimos, compartilhamos, curtimos e, sem perceber, normalizamos violências que, se fossem ditas de forma direta, soariam escandalosas. A inteligência artificial, nesse caso, não apenas cria conteúdos: ela automatiza e multiplica uma pedagogia do preconceito.
Esse processo cria o que podemos chamar de uma espécie de ideologia sussurrada. Ao contrário das narrativas mais escancaradas, ela não grita, não mente frontalmente, mas apenas insinua, repete, brinca. Quem consome esse tipo de conteúdo todos os dias, mesmo que sem intenção política, vai formando uma lente enviesada sobre o mundo. Quando chega o período eleitoral, essa lente já está cristalizada. O efeito acumulado dessas piadas é uma adesão emocional a estereótipos e ideias reacionárias. E isso é ainda mais potente do que a mentira em sua forma bruta. Porque, nesse caso, não há um fato a ser desmentido, mas uma atmosfera cultural sendo construída. De repente, a manipulação já aconteceu e ela se deu pelo afeto, pela normatização.
Aqui cabe um alerta: o uso político da inteligência artificial, porém, não é algo futuro. Evidência disso é que diversos portais relataram que o Partido Liberal (PL), partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, vem promovendo oficinas em parceria com Google e Meta para treinar suas bases no uso dessas ferramentas. O objetivo é nítido: instrumentalizar a tecnologia para produzir conteúdo político, eleitoral e simbólico com aparência profissional. Mais do que ensinar militantes a fazer memes, o partido está construindo uma base tecnicamente preparada para disputar o espaço das redes com IA. Isso transforma qualquer celular em uma produtora de campanha e qualquer apoiador em um criador de conteúdos com potencial de viralização massiva. O resultado é um ecossistema onde a disputa política se dá muito antes do voto, pois ela acontece nas entrelinhas dos vídeos, nas piadas, nas imitações, nos sorrisos que carregam preconceitos.
Estamos, talvez, diante da primeira eleição em que conteúdos gerados por inteligência artificial terão mais alcance, impacto e frequência do que os próprios discursos dos candidatos. A campanha de 2026 já começou, não nas ruas, mas nos bastidores digitais, onde bots, algoritmos e vídeos fabricados moldam o senso comum antes mesmo que a propaganda oficial comece. A cada vídeo criado por IA que ridiculariza mulheres engajadas com frases como “feminista não se depila”, que mostra pessoas LGBT+ como “confusas” ou “pervertidas”, ou que caricatura eleitores de esquerda como figuras grotescas, como homens barbudos com camiseta vermelha comendo capim ou gritando palavras de ordem sem pensar, o que se constrói não é só uma piada. É um reforço ideológico. Um acúmulo invisível de imagens e sensações que vai minando o respeito e alimentando a aversão. Aquilo que começa como riso vira desprezo. E o desprezo, alimentado todos os dias, vira voto. Voto contra, voto com ódio, voto que já foi manipulado muito antes do debate acontecer ou dos candidatos serem oficialmente lançados.
O que está em curso não é apenas uma disputa eleitoral, mas uma disputa moral. O uso da inteligência artificial nesses conteúdos não visa apenas convencer, ele visa moldar o que é considerado aceitável ou ridículo, superior ou inferior, humano ou descartável. Quando a zombaria de minorias se torna viral, ela não só agride; ela educa. Ensina que rir do outro é mais fácil que escutá-lo. Ensina que quem pensa diferente é inimigo. Que o debate pode ser substituído por deboche. É assim que a IA, mesmo sem falar de política diretamente, cumpre um papel profundamente ideológico: esvazia o diálogo e ocupa o lugar da dúvida com certezas agressivas.
E há um silêncio que grita: a omissão das plataformas. Big Techs como Google e Meta seguem lucrando com a viralização desses conteúdos, mesmo quando estão cheios de preconceito e manipulação. A desculpa da neutralidade tecnológica já não se sustenta. Essas empresas decidem o que aparece, o que engaja, o que entra na bolha de cada usuário. E se elas decidem isso, também têm responsabilidade sobre o que o povo consome e sobre o que isso gera politicamente. Fingir que são apenas “plataformas” é um truque. Elas são hoje centrais de distribuição ideológica, e ignorar isso é entregar a democracia nas mãos de quem não precisa de voto para ter poder.
Esse debate precisa acontecer agora, antes da chegada do período eleitoral, mas também antes da próxima evolução desses modelos. Ignorar isso é aceitar que a democracia seja conduzida não por ideias, mas por ilusões sofisticadas. Regular agora é garantir o direito de escolher com base na realidade. Adiar é permitir que a próxima eleição seja vencida por quem souber manipular melhor a ficção, fazendo campanha antecipada com suporte técnico e orientação das Big Techs. Até porque, para além de qualquer frase de efeito, você já percebeu que estão usando IA para antecipar a disputa eleitoral?
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Código de guerra: como o algoritmo substituiu a farda https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/big-techs-e-completo-algoritmico-militar.html
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